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REFLEXOS CONTEMPORÂNEOS DO GOLPE DE 1964: ENTREVISTA COM LUCAS PEDRETTI




Há 61 anos, em 31 de março de 1964, os militares davam início a um dos períodos mais nefastos da história do Brasil: a ditadura militar. A partir daquele dia, o país assistiu à derrubada do presidente João Goulart, ao fechamento do Congresso Nacional, à suspensão de direitos e garantias fundamentais, bem como a perseguição, o assassinato, a tortura e o desaparecimento de centenas de pessoas, tidas como “inimigas do regime”.


Na última década, tivemos retrocessos e avanços no que diz respeito à busca por memória, verdade, justiça e reparação aos acontecimentos do regime militar. Pelo lado negativo, destaca-se, especialmente, o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2010 que declarou constitucional a Lei de Anistia – responsável por frear investigações que buscavam, mais uma vez, a memória, a verdade, a justiça e a reparação dos atos praticados pelos militares – e a extinção da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos da ditadura ao apagar das luzes do governo Bolsonaro.


Por outro lado, os avanços conquistados pelos trabalhos da Comissão da Verdade e a retomada do assunto no debate público graças a Ainda Estou Aqui, vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional, são passos fundamentais para que não apaguemos a violação sistemática de direitos humanos pelo Estado brasileiro entre os anos de 1964 e 1985. 


Diante dessa luta permanente em nome da democracia, a Gazeta Vargas entrevistou o historiador Lucas Pedretti, doutor pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e autor de A transição inacabada: violência de Estado e direitos humanos na redemocratização, Dançando na mira da ditadura: bailes soul e violência contra a população negra nos anos 1970, entre outras obras acerca do tema. 


Em 2025, o golpe militar de 1964 completa 61 anos. Qual é a importância da sociedade brasileira continuar suas discussões sobre o que aconteceu durante a ditadura militar?


O golpe de 64 e a ditadura são eventos históricos –  parece paradoxal – mas na medida em que eles se distanciam cada vez mais no tempo, eles se tornam cada vez mais presentes. Exatamente porque temos vivenciado no contexto contemporâneo uma série de eventos que remetem imediatamente ao autoritarismo, à violência de Estado e à ditadura militar. Portanto, o debate sobre aquele período se torna novamente necessário. 


Desde o final da ditadura, os legados do regime autoritário se fizeram muito presentes na forma da violência policial nas periferias, nas favelas. E, desde o governo Bolsonaro, ganhou muita relevância também a questão das Forças Armadas, o que se desdobrou na tentativa de golpe de 2022, no plano de assassinato do Lula e no 8 de janeiro. 


Então, esses são eventos que, na medida em que a gente vivencia, eles exigem da sociedade brasileira que a gente volte a discutir o autoritarismo, volte a discutir a violência de Estado, volte a discutir as Forças Armadas, volte a discutir o problema das reformas das polícias, porque esses temas não ficaram claramente no passado. Eles são temas contemporâneos, são temas presentes. 


E, para fazermos um debate sobre o que precisamos fazer com a polícia hoje, o que precisamos fazer com as Forças Armadas hoje, como combatemos o autoritarismo hoje, como combatemos a tortura hoje, é fundamental que façamos o debate sobre aquilo que não foi feito no passado: o que ficou de legado, o que ainda temos em termos de memória daquele período que precisamos promover em termos de reparação às vítimas, em termos de esclarecimento da verdade e em termos de Justiça também.


Então, a importância de continuarmos as discussões é porque falar sobre ditadura não é falar sobre o passado. É falar sobre o presente. É falar sobre o futuro. 


O Supremo Tribunal Federal decidiu retomar o julgamento da Lei de Anistia por meio do Caso Rubens Paiva. A decisão aconteceu em paralelo ao sucesso do filme que retrata a morte do deputado, Ainda Estou Aqui, vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional. Quais são os efeitos que a Lei de Anistia ainda reproduz nos dias atuais? Um reposicionamento do STF frente sua decisão de 2010, a qual manteve a anistia de militares torturadores da ditadura, pode contribuir para o fortalecimento da democracia?


A Lei de Anistia permitiu que os militares não fossem responsabilizados pelos crimes que cometeram. Assim, não só garantiu essa impunidade criminal e jurídica, mas também foi usada como um instrumento político pelos próprios militares para tentar bloquear a própria discussão pública sobre o que aconteceu na ditadura. Então, a ideia de esquecimento, a ideia de reconciliação, são ideias que vinham junto da Lei de Anistia, elas serviram ao longo de todas as décadas da Nova República para que os militares tentassem impedir o avanço das discussões sobre a ditadura. 


Vimos o efeito disso no governo Bolsonaro e no 8 de janeiro: a não responsabilização dos golpistas de ontem é um caminho muito fértil para que esses sujeitos e essa instituição – as Forças Armadas – achem que tem a possibilidade de intervir e atentar contra a democracia novamente. Afinal, eles olham para o passado, veem que ninguém foi responsabilizado a despeito das torturas, dos assassinatos e dos desaparecimentos. Então, para eles vale a pena atentar novamente contra a democracia porque eles sabem que na história do Brasil ninguém nunca foi responsabilizado por isso. 


Me parece que responsabilizar os golpistas do passado, ao mesmo tempo que faremos esse processo inédito de responsabilização dos golpistas do 8 de janeiro, dos generais do Bolsonaro e do próprio Bolsonaro, é muito importante. A convergência desses dois processos é muito importante simbolicamente porque ela vai estabelecer um tipo de corte que nunca existiu na história do Brasil. É o corte do “olha, isso aqui não se pode fazer. Essa linha do ataque à democracia não pode ser ultrapassada porque se você ultrapassar, você vai ser responsabilizado, vai responder por isso”.  A história do Brasil era o contrário: “olha, tudo bem você ultrapassa a linha do ataque à democracia, mas logo ali na frente você é anistiado”. Os militares ficaram todo o século XX tentando, às vezes, conseguiam e, assim, caíamos no autoritarismo. Então, acho que sem dúvida nenhuma uma revisão da Lei de Anistia nessa conjuntura específica em que vamos também responsabilizar de forma inédita os generais golpistas do presente é algo que vai fortalecer nossa democracia contra futuros ataques e tentativas de golpe.  


Neste ano, a Constituição brasileira, símbolo da redemocratização, completa 37 anos. Como o senhor avalia os resultados da transição democrática? Há ainda alguma espécie de herança da ditadura em nossa sociedade?


A transição para a democracia pode ser vista de vários ângulos: por um lado, é evidente que o regime democrático trouxe avanços concretos para vários campos da sociedade – se você pensa no SUS, se você pensa na democratização das universidades, se você pensa nos indicadores sociais, se você pensa na estabilidade econômica, se você pensa na pobreza –, tudo isso veio sob o regime da Constituição de 1988.


Ao mesmo tempo, a própria transição, tal como foi projetada pelos militares, não foi pensada pelas Forças Armadas e pela ditadura como um processo que deveria necessariamente redundar em um regime democrático como que vivemos hoje. Pelo contrário, a transição foi pensada pelos militares como algo que deveria gerar um regime que institucionalizaria os ideais da “revolução de 64”, era o que eles falavam. A ideia deles era sair do poder para não comprar o desgaste, mas manter uma série de mecanismos repressivos e coercitivos que fariam que o espírito fundamental do golpe se mantivesse organizando a vida política e social do Brasil.


Esse projeto inicial dos militares foi sendo disputado na medida em que o conjunto da sociedade também passou a demandar coisas na transição. Então, a luta pela anistia é uma luta que começa na sociedade civil. Também a luta pelas Diretas Já! e a participação popular na constituinte, tudo isso são elementos que mostram um aspecto da transição muito mais disputado por um lado.


Agora, por outro lado, a depender do ângulo que olhamos, a transição deixou muitas lacunas e, particularmente, na questão dos aparatos de repressão do Estado: polícia e Forças Armadas. No caso dessas instituições, que exercem a violência em nome do Estado, de fato, a transição não foi capaz de alterar de maneira mínima a sua lógica de funcionamento, a sua arquitetura institucional, o seu grau de autonomia, o seu grau de politização. 


Então, do ponto de vista, por exemplo, das polícias e das Forças Armadas, o que temos é sem dúvida alguma uma herança muito forte da ditadura que, por sua vez, herdou também de períodos anteriores uma polícia já violenta, já racista; Forças Armadas já acostumadas a intervir na vida política nacional, já marcadas pelo pensamento autoritário.


Esse acúmulo histórico, que não começa em 64, mas que tem no golpe e na ditadura um momento fundamental, ele deixou legados para o regime democrático que vivemos e essas são tendências que precisamos enfrentar. 


Na última década, houve um aumento de manifestações de cunho antidemocrático que pediam por uma intervenção militar nos Três Poderes. Após as últimas eleições, os movimentos antidemocráticos se intensificaram ao ponto de ocorrer uma invasão nos edifícios do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal. Na sua visão, o que fez com que setores da sociedade brasileira desejassem o retorno do autoritarismo no Brasil?


Precisamos, na verdade, encarar de frente o fato que parte significativa da sociedade brasileira tem valores autoritários, patriarcais e racistas. Se você olha a longo prazo, você tem uma franja da sociedade que, historicamente, apoiou e sustentou um pensamento autoritário e políticas autoritárias. Não é como se isso fosse uma novidade desses tempos. É claro que há momentos em que esses setores têm menos espaço para aparecer no debate público, mas, em determinados momentos, eles acumulam força.


Hoje, existe um movimento político organizado de extrema direita de bases profundamente autoritárias que está ancorado numa força social concreta que também comunga desse pensamento autoritário. Então, não acho que setores de repente passaram a desejar o retorno do autoritarismo, mas precisamos entender que existe um conjunto de pessoas que são autoritárias, carregam pensamentos e valores autoritários.


A pergunta é “o que fazer a partir daí? Como lidar com isso?”. O ponto de partida é não achar que o autoritarismo, a violência, o racismo são coisas externas a nós; então, nossa sociedade seria “harmônica, pacífica e democrática” e que, de vez em quando, é invadida por um autoritarismo externo a nós e que se impõe por alguma razão. Não! Essas pessoas e esses setores da sociedade estão aí e sempre estiveram aí. 


A pergunta é “como, por um lado, estruturamos mecanismos institucionais de defesa da democracia para impedir que esses setores ganhem força? E de, um outro lado, como que fazemos para disputar esse valores na sociedade e como fazemos para que o pensamento autoritário perca força e não ganhe força?”. Esse, então, é um problema de médio e longo prazo, que é como vamos construir uma outra cultura de valorização da democracia no conjunto da sociedade brasileira. 


O governo federal se silenciou perante o sexagenário do golpe militar no ano passado. Qual papel o Estado brasileiro ainda possui com as vítimas e seus familiares da ditadura militar? Há espaço para que mais investigações sobre os crimes cometidos pelos militares sejam feitas? 


O Estado brasileiro ainda tem muitas dívidas com os familiares e com as vítimas. Sem dúvida nenhuma existe uma série de coisas que devem ser feitas – desde a busca por desaparecidos até abertura de determinados arquivos, especialmente, arquivos das Forças Armadas, passando por políticas e iniciativas de memória mais enfáticas e permanentes.  Todos esses aspectos são ainda grandes tendências do Estado brasileiro. 


Agora, tem uma ou outra coisa que acho importante colocar, que temos defendido nos últimos anos que é: precisamos, para além de resolver essas pendências históricas, ampliar o nosso olhar sobre o que foi a violência da ditadura e quem são as vítimas da ditadura. Isso significa pensar nessas políticas de memória, verdade, justiça e reparação também, especialmente, à luz dos recortes de raça, classe, gênero e território para incluir nessas respostas do Estado brasileiro um olhar especial para a violência que foi exercida contra os povos indígenas, para a violência que se abateu nas favelas e nas periferias, da violência que se abateu contra a população negra naquele período.


Acho que a inclusão desses recortes nas políticas de memória, verdade, justiça e reparação é uma urgência que precisamos de fato avançar. 


Autoria: Erick Martins Rosario

Revisão: André Rhinow e Artur Santilli

Imagem da capa: Ana Carolina Clauss 


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Referências


ALMEIDA, Marcos Vinícius. Ainda estou aqui e as disputas pela memória nos 60 anos do Golpe Militar. Brasil de Fato, São Paulo, 20 nov. 2024. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2024/11/20/ainda-estou-aqui-e-as-disputas-pela-memoria-nos-60-anos-do-golpe-militar/. Acesso em: 25 de março de 2025.


BBC News Brasil. Como ‘Ainda Estou Aqui’ influenciou STF a reabrir debate sobre Lei da Anistia na corte. BBC News Brasil, 15 fev. 2025. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3rwgdx5g31o. Acesso em: 25 de março de 2025.


BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório final. Brasília, DF: CNV, 2014. Disponível em: https://www.gov.br/cnv/pt-br/acesso-a-informacao/publicacoes/relatorio-final. Acesso em: 25 de março de 2025.


DIAS, Ana Beatriz. "Ainda Estou Aqui" ganha como Melhor Filme Internacional no Oscar 2025. CNN Brasil, 2 mar. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/ainda-estou-aqui-ganha-como-melhor-filme-internacional-no-oscar-2025/. Acesso em: 25 de março de 2025.


G1. A 15 dias do fim do governo, aliados de Bolsonaro decidem acabar com Comissão de Mortos e Desaparecidos na Ditadura. G1, 15 dez. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/12/15/a-15-dias-do-fim-do-governo-aliados-de-bolsonaro-decidem-acabam-com-comissao-de-mortos-e-desaparecidos-na-ditadura.ghtml. Acesso em: 25 de março de 2025.


G1. STF rejeita ação da OAB e decide que Lei da Anistia vale para todos. G1, 29 abr. 2010. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2010/04/stf-rejeita-acao-da-oab-e-decide-que-lei-da-anistia-vale-para-todos.html. Acesso em: 25 de março de 2025.


SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.


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