O coletivo #VoteLGBT, em parceria com o Box1824 - escritório de cultura e inovação - publicou em 2020 uma pesquisa diagnóstica sobre os desafios da comunidade LGBT+ no contexto de isolamento social em enfrentamento à pandemia do novo Coronavírus. A pesquisa parte de uma simples pergunta: "Você sentiu algum impacto na pandemia de Covid-19 que tem relação com o fato de você ser LGBT+?". A resposta pode ser quase que intuitiva para a maioria de nós, mas o que está por trás dessa afirmação, nem sempre. São essas as questões que pretendemos endereçar.
Nada mais justo do que iniciarmos, então, pelo problema que antecede e propulsiona os demais: a vulnerabilidade. Pessoas LGBT+ vivem, reconhecidamente, um grau de vulnerabilidade intrínseco à sua orientação sexual ou identidade de gênero, assim como acontece com grande parte das minorias sociais. No caso aqui dissertado, isso se dá pela dificuldade de inserção desse grupo na sociedade, considerando que essa é estruturada em padrões brancos e hétero-cis-normativos, fato que constantemente marginaliza e exclui a parcela que não se enquadra nessas ditas expectativas. Desde o medo de agressões físicas com o qual muitos convivem, passando pela discriminação que os impede de ocupar determinados ambientes ou lugares sociais, até questões institucionais - como a luta constante pelo reconhecimento de direitos civis básicos - a comunidade lgbt enfrenta cotidianamente diversas formas de violência.
Mas o que acontece quando uma parcela da população que já é coercitivamente distanciada da sociedade é desamparada num contexto como o da pandemia da COVID-19? Resumidamente, a agudização dessas vulnerabilidades. Isso é dizer que, conjuntamente às minorias raciais e outros segmentos marginalizados da população, os LGBT+ estão entre os principais impactados pela perda de emprego, quebra da rede de apoio e deterioração da saúde mental - decorrentes diretamente da pandemia.
O convívio familiar é, em muitos casos, mais uma fonte de repressão contra essas pessoas - seja verbal, psicológica, ou física. O acolhimento é uma necessidade que leva as pessoas LGBT+ a buscarem por redes de apoio em que possam encontrar o suporte e a afetividade negligenciados por suas famílias. O problema é que, em decorrência da pandemia e do isolamento social, espaços de pertencimento social como as universidades e outros ambientes ligados à questão identitária dessa população lhes foram retirados. Com isso, o acesso a redes de apoio foi comprometido, fazendo com que refúgios adotados pela população LGBT+ para combater e lidar com relações desconfortáveis - e até mesmo violentas - enfrentadas no dia a dia, sumissem da noite para o dia, criando-se um isolamento que vai muito além do físico.
Observados esses fatores, não é difícil entender porque 42% das pessoas que responderam à pesquisa mencionada no começo do texto relataram o aumento de problemas ligados à saúde mental como o maior impacto da pandemia. O #VoteLGBT demonstra que o desgaste psicológico decorrente do convívio com diversas formas de preconceito acarreta a manifestação de doenças mentais como depressão e ansiedade entre a população LGBT em proporções que superam a média nacional - um problema anterior à crise sanitária - mas fortemente agravado pelo isolamento social.
Até aqui, nada de novo sob o sol.
Pode ser que nada disso seja uma grande novidade para você, pois todos sabemos que grupos discriminados têm seus sofrimentos particulares. É o preço que se paga por existir em sociedade, certo? Então - sim - as constatações são tristes, mas são apenas números, e você provavelmente vai se esquecer em poucos minutos, como bem aprendemos ao longo dos mais de 300.000 mortos nos últimos 12 meses. Pensamos então em aproximá-los da nossa realidade.
Os relatos a seguir foram doados anonimamente por alunos LGBT+ da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas em março de 2021. Mais da metade do Coletivo Orgvlho respondeu a uma simples pergunta: "Você sentiu que o impacto da pandemia foi diferente por você ser LGBT?". Desses, que provavelmente estão entre os seus conhecidos, colegas de curso ou de turma e talvez - por que não? - entre os seus amigos, 57% disseram que sim.
“Tenho que tomar muito cuidado com as coisas que falo aqui em casa quando converso com meus amigos, sempre acho que podem ouvir ou ver alguma conversa minha em meu computador ou algo assim. Ainda rolam comentários homofóbicos de vez em quando em casa, o que me deixa ainda pior. Não sou assumido pros meus pais, então vem comentários só por piada mesmo. Viver 100% do tempo em casa é não ter nenhuma liberdade.”
“Não sair de casa e, consequentemente, mudar a maneira de me vestir e me arrumar mudou minhas performances de gênero. Por ser não-binária isso realmente tem impactado minha identidade.”
"Por ter que me isolar com minha família, senti falta de pessoas parecidas comigo, que entendem o que eu sinto e com que eu posso me identificar.”
Os relatos retratam como muitas vezes, para a comunidade LGBT+, o ambiente familiar é o de maior insegurança e, com a pandemia, espaços de aceitação se tornaram cada vez mais escassos. Assim, a parcela dessa população ficou restrita a uma rotina diária de agressões psicológicas e ataques identitários, acrescentados às angústias generalizadas causadas pelo isolamento social, das quais resulta o sentimento de solidão e falta de liberdade de expressão. A pressão para se encaixar nos padrões da heteronormatividade, para aqueles que dela tinham se afastado ou, pelo menos, conseguido ignorar, volta com toda a força.
“Amigos héteros puderam encontrar namoradas, acredito que se eu tivesse um namorado isso não poderia acontecer.”
Não menos importante é o impacto da barreira que se opõe à construção de laços afetivos nesse momento, já que as pessoas que se relacionam com outras do mesmo sexo não têm a mesma liberdade ou validação dos seus relacionamentos por suas famílias, como acontece, via de regra, em relacionamentos heterossexuais. Além de apoio, conforto e aceitação, negados à população LGBT+ no contexto pandêmico, foi lhes retirada - também - a possibilidade de experimentar uma parte (que nos perdoem os niilistas) essencial da experiência humana - a busca pelo amor. Resta-nos torcer para que seja breve, pois como escreveu Machado de Assis:
"Cada qual sabe amar a seu modo; o modo, pouco importa; o essencial é que saiba amar."
A quem servir, reforçamos a importância da busca por espaços seguros para compartilhar experiências e apoio mútuo, seja no seu grupo de amigos, coletivos da faculdade, ou outro lugar onde se sinta pertencente. Uma iniciativa interessante e compatível com o isolamento social é a “Acolhe LGBT+”, plataforma online de match entre profissionais de psicologia e pessoas LGBT+ que necessitam de atendimento psicológico gratuito.
Colocadas de lado todas as questões externas, a aceitação ainda é um processo que sempre terá o seu início e fortificação dentro de nós mesmos, e ambientes de respeito e acolhimento são valorosos na jornada para que possamos nos tornar cada dia mais aquilo que se é. A pandemia pode ter trazido diversos obstáculos à saúde mental de todos, principalmente da população LGBT+, mas não estamos – e não precisamos estar – sozinhos.
Autoria: Ana Catarina Rodrigues, Gabriela Cavagnoli, Glendha Visani, Julia Martiniana Revisão: Cedric Antunes Imagem de capa: Reprodução Mídia Bixa
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