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Revolução Olímpica


Há duas sextas, lembramos da parte boa de sermos humanos na abertura da 33ª edição das Olimpíadas. Pude esquecer da rotina brasileira (fogo no Pantanal) e da rotina mundial (60 bilhões pra guerra). Estava absolutamente inebriado pelos 500 metros de franjas usadas para fazer o vestido mais lindo do mundo para a Céline Dion cantar "Hino ao Amor" do alto da Torre Eiffel. Absolutamente maravilhado pela Conciergerie dominada por guitarras de heavy metal, com serpentinas vermelho-sangue explodindo de suas janelas, festejando a Revolução Francesa no tema da Liberdade. Absolutamente impressionado pela amazona vestida de Joana d’Arc numa armadura da designer Jeanne Friot, majestosa em seu cavalo de prata sobre as águas do rio. 

 

A França nos convidou para assistir a um evento com novos ares de revolução, cheio de ineditismos, uma completa invasão à Paris: em vez de guilhotinas na Place Concorde, skatistas. Uma abertura no rio, que em vez de fragatas, atletas; nas ruas, que em vez de garfos e tochas, o fogo olímpico; no Louvre, em vez da Catarina de Médici, os Minions e a Mona Lisa. Na prisão de Maria Antonieta, show de música nas janelas e o exército revolucionário dançando pela cidade. Por breves três horas, gentes uniformizadas com suas flâmulas festejando nos 85 barquinhos, orgulhosos de suas origens em completa paz. Que beleza! Quelle joie!

 

É verdade que houve incertezas estéticas normais de um evento global. Questionamentos conservadores sobre o bom gosto da tal Santa Ceia, confundida pela inspiração em “Festa aos Deuses”, pintura de Jan Van Bijlert. Incertezas sobre a qualidade do desfile de moda (desanimado) na Ponte Debilly, salvo pelo set (animado) da DJ Barbara Butch. Mas foram pedaços da cerimônia absolutamente superados pela junção de Zidane e Serena Williams ao fofíssimo campeão olímpico centenário Charles Coste que, sob a chuva, sinônimo de boa sorte, fechou o tour da tocha - queira Deus que sem pegar uma pneumonia, pobre homem! Em suma e como diria o ditado: nem o Brasil (Rio 2016) agradou todo mundo, quem dirá a França? Pudera.

 

Inspirada no seu passado e celebrando os feitos da França para a humanidade, a abertura foi criada para caber no futuro. Enquanto os homens criadores da ficção - René Goscinny, os irmãos Lumière e Jean-Luc Godard - foram celebrados, dez estátuas de mulheres criadoras da vida real foram erguidas de uma vez, reconhecendo o esforço de Simone de Beauvoir, Olympe de Gouges, Alice Milliat, Gisèle Halimi, Paulette Nardal, Jeanne Baret, Christine de Pisan, Louise Michel, Alice Guy e Simone Veil para mudarem os seus presentes. De repente, como quem não quer nada senão fazer história, a pira olímpica foi “acesa” num balão iluminando mais ainda a cidade-luz. Vapor de água e luz amarela, sem qualquer combustão necessária: o fogo do futuro para a Olimpíada carbono zero. Coisa de gente que se orgulha do que já fez e animada para o que ainda vai fazer. 

 

E aí, no breve espaço da primeira semana de competições, um deslumbre ainda maior com o talento, o esforço e o carisma dos atletas. No meu coração, Paris virou Mônaco, eu virei a Adriane Galisteu e a Rebeca Andrade é o meu Ayrton Senna. Paris virou o Japão, eu virei o Galvão Bueno e a Jade Barbosa é o Cafu em 2002. O Brasil já conquistou 14 medalhas, cada uma delas com um fragmento da Torre, naturalmente. Afinal, aprendemos com os próprios europeus que quando se conquista um país, historicamente se leva um pedaço para casa. 


Tenho pouca curiosidade sobre a turma que quer morar na Lua, sobre os foguetes que vão plantar cenouras em Marte e essa curiosidade fica ainda menor quando me lembro da maravilha de ser daqui mesmo da Terra. A maravilha que foi assistir à chegada da tocha olímpica pelos telhados de Paris nas mãos de um misterioso mascarado. Os mesmos telhados em que Thierry Mugler fotografou sua musa no alto do Palais Garnier, como um símbolo de beleza e sensualidade. Os mesmos telhados, agora do Palais Garnier, em que a Marianne, símbolo da França, com um vestido tricolor de oito metros de cauda emendado na bandeira nacional, cantou a Marselhesa para o mundo. Os mais sensíveis, para verem além, não precisam voar de foguete, basta subir alguns lances de escada. Enquanto essas coisas forem acontecendo na Terra, ainda que de vez em quando, eu vou ficando por aqui. 

 

Esse é um texto que existe para celebrar um feito da humanidade como espécie capaz, potencialmente feliz e unida e o planeta como um lugar que ainda dá pra salvar. É um olhar que se volta para as partes boas desse evento, sem qualquer compromisso em tratar das dificuldades porque todo mundo já sabe e as destaca. Mudar não é fácil. Inovar é sempre complexo, ainda que nas mãos dos mais experientes no assunto. Então, aqui só cabe admirar a coragem transgressora de dar ao mundo uma festa dessas, mais diversa, mais aberta. A situação é que eu escolho apenas gostar, fazer vista-grossa, passar um pano. Gostar, num tempo com prevalência do desgosto pelas coisas, também é revolucionário.

 

Como o esporte preferido dos franceses é fazer revolução, eu me junto a eles como um atleta de primeira classe. Não posso falar mal pois decido só aproveitar a soprano Marina Viotti, como Maria Antonieta, cantando uma ária de Carmen (Georges Bizet) e só me divertir com a Lady Gaga, como Zizi Jeanmaire, dançando o can-can. Não posso falar mal porque lembrei que a vida real pode ser um pouco mítica: na Pont des Arts, que já guardou muitos cadeados dos apaixonados, os soldadinhos da república me flecharam como o Cupido em sua alegre parada; do fogo olímpico aceso pelo mascarado, a cantora Aya Nakamura surgiu como uma Fênix de penas douradas, linda e misteriosa para ressuscitar o entusiasmo esquecido por todos nós. Por isso, a cada quatro anos, nem que seja por um mês, revoluciono e escolho só gostar. Se for para falar mal nos próximos dias, falo mal de quem atrapalhar a vida do Brasil. Agora chega de escrever que vou ligar o SporTV.


 

Autoria: Pedro Henrique Guimarães

Revisão: Laura Freitas

Imagem de capa: Bernat Armangue para a Reuters

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