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SE CORRER, O BICHO PEGA



Se correr, o bicho pega, se ficar, o bicho come. 


Sempre achei que essa frase fosse mentira, que seria possível correr rápido o suficiente daquela coisa. Mas eu tenho fugido a minha vida inteira, e acho que estou cansando de correr.


Tudo começou quando eu era criança. Meus pais sempre trabalharam muito, então acabava passando muitas tardes com minha avó. Não me importava com isso e, na verdade, gostava bastante, já que ela me deixava dormir tarde e me paparicava com todo tipo de doces e salgados que um garoto pudesse – ou não – imaginar. Além disso, ela morava em uma casinha bege de muro baixo – que eu adorava – com um jardim no qual eu podia brincar o dia inteiro enquanto ela cuidava das plantas ou lia um romance complicado. Na hora do jantar, ela me contava histórias da sua vida, e eu ouvia com tanta atenção que minha comida sempre acabava fria, mas ela nunca me dava bronca por conta disso. Os causos às vezes eram tão surreais que suspeito que fossem inventados ou exagerados, mas eu não me importava nem um pouco.


Hoje em dia, quando olho para trás, acredito que aquelas longas tardes, curtas demais para qualquer criança que se diverte, foram alguns dos momentos mais felizes da minha vida. Reexaminando tudo, posso afirmar que, se a felicidade genuína existe de fato, ela só vem junto da inocência da infância ou do amor sincero.


A questão com a inocência é que, quando atropelada pela realidade, ela se parte em mil cacos, e nunca mais volta – um processo que também quebra algo dentro de você. É assim com todo tipo de inocência. A conta chega em algum momento.


A minha chegou quando eu tinha 6 anos e fui acordado pela minha mãe que, em prantos, me tirou debaixo das cobertas nas quais estava enroscado e me abraçou enquanto soluçava compulsivamente. Sua voz se quebrou de novo e de novo quando repetiu que minha avó havia morrido. Acho que ela não falava comigo, e sim tentava desafiar o mundo e a mortalidade, como se o fato de estar repetindo aqueles gritos fosse mudar algo ou fazer a mãe dela sair de trás da porta falando que era tudo brincadeira. Acho que ela também perdeu o que lhe sobrava de inocência naquele dia.


Fora isso, as minhas lembranças daquela manhã são bem nebulosas. Recordo-me de alguns fragmentos, porém em todos é como se eu fosse um observador externo e assistisse às ações de uma criança qualquer: meu pai me abraçando, minha mãe mandando eu me vestir para ir pra casinha bege, o ruído dos dois conversando enquanto eu olhava as árvores passarem pela janela do carro. Eu fiquei sério durante todo esse processo porque, apesar de sentir, subconscientemente, não acho que entendia direito o que estava acontecendo. A morte chega, destroça sua inocência e vai embora, mas não é até a poeira abaixar que você compreende que nunca mais sentirá o calor do olhar de alguém. 


Infelizmente, a minha memória se torna cristalina depois que avistamos o muro baixo. Meus pais entraram na casa e – imagino eu – começaram a se ocupar do enterro e dos objetos da minha vó, o que me permitiu perambular por aquele local tão familiar, mas que agora carregava uma aura inerte, cinza, morta. Conforme passeava pelas plantas, como ela fazia quando as regava, é que senti a presença do que me acompanharia pelo resto da vida. 


Estava virado e observando uma das azaleias dela quando, de repente, o ar ficou mais gelado, os passarinhos nos galhos emudeceram e os pelos da minha nuca se eriçaram. De primeira, eu não vi nada, mas eu senti. Vinha de dentro da casa. Algo terrível, opressivo e faminto apareceu lá dentro. Foi quando me virei e finalmente vi aquela coisa


Na porta aberta da casa, um lobo me encarava. 


Seus pelos o cobriam como a escuridão noturna, e os olhos eram âmbares, cravados em mim com um interesse mórbido e frio. Daquela silhueta sinistra emanava uma intenção predatória que agarrou meu coração como uma mão gélida. Por momentos que pareceram a eternidade, nos fitamos parados. Em algum ponto, ele pareceu se mexer em uma menção de vir até mim, e abri o berreiro, como a criança inocente que eu deixava de ser. Meus pais correram e me abraçaram, achando que eu chorava por conta da minha vó. 


Mas foi culpa do que quer que fosse aquela coisa


Nunca mais adentrei ou vi a pequena casa bege. Acho que a demoliram alguns anos atrás. Mas aquele lobo, aquela presença horrível que nasceu ali, não foi junto. Ele me seguiu de volta para casa – e para o resto da vida. Passei a vê-lo recorrentemente, seja em meus sonhos, seja acordado, e nunca mais me senti completamente sozinho, pois sempre estava acompanhado de algum jeito daquele horror latente. 


Tornei-me uma criança e, depois, um jovem soturno e distante: em todas as fotos de aniversários, páscoas e natais eu estava sério ou, se sorria, não era tão iluminado quanto um dia já fora. Claro que todo mundo atribuiu isso ao luto, e fui colocado em todo tipo de terapia que se possa pensar. Nada funcionou, é claro. Nada conseguiu espantar aquela sombra que pairava sobre mim e me impedia de confrontar qualquer sentimento infeliz, já que eu sabia que, se parasse para pensar, seria devorado. Eu estava sendo caçado, e entre o se ficar, o bicho come e o se correr, o bicho pega, decidi fugir. 


E foi assim que vivi a vida. Tive alguns amigos na escola, com os quais pude dar algumas risadas e abraços verdadeiros, mas nunca pude me conectar profundamente com nenhum deles. Afinal, ninguém parecia viver – não, não viver, sobreviver – sob um terror profundo, do qual se tem certeza de que te devastaria na primeira chance que tivesse, mas que ao mesmo tempo é carne e unha com sua consciência. Se eles também estivessem sendo perseguidos, devem ter ao menos descoberto uma maneira de afastá-lo. Na falta disso, eu continuei a correr. 


Poucas vezes eu me apaixonei, permitindo-me uma ligação mais forte com algumas pessoas. Como já disse antes, a ingenuidade do amor sincero é capaz de nos levar a um local bem próximo da felicidade genuína, e falo por experiência: amar muitas vezes me distanciou daquela coisa, servindo como um escudo que me protegia daqueles olhos amarelos famintos e como um calor que afastava os detestáveis pelos de meia-noite.


Entretanto, como todo amor sincero anda numa tênue linha entre o deleite e o desastre, eventualmente aquele ar frio e estático emudecia o mundo, eu sentia os âmbares cravados em mim novamente, e tudo se dissolvia no medo. 


Por isso, em algum ponto logo depois da faculdade, decidi que era mais fácil me fechar do mundo externo, focar ao máximo em tentar fugir daquilo que sempre me causou maior angústia e aflição na vida. Não saio muito de casa, e quando saio não me desvio do caminho usual, não converso com ninguém e tenho sono leve. Tem sido uma existência miserável, mas é a única que me restou. 


Até hoje. 


Hoje, quando acordei, tudo parecia comum. Após abrir os olhos, passei um tempo deitado no escuro, levantei-me e fui tomar uma xícara de café preto – que é meu café da manhã habitual – quando percebi que o pó de café tinha acabado. Não sei como havia cometido um erro de contagem da última vez que fui ao mercado, mas aconteceu. 


Olhei pela janela do apartamento. Os pássaros cantavam ao longe, e eu ouvia o barulho de pneus e buzinas que indicavam muita gente na rua, o que odeio, mas que ao mesmo tempo significa menos risco de ser pego sozinho por aquela coisa. Então, eu respirei fundo, coloquei um tênis, e saí para uma rápida compra. 


Eu sei, foi um erro. Eu sei que foi e, agora, do alto do meu horror, só consigo sentir arrependimento. 


Quando pisei fora do prédio, de imediato percebi algo errado. Deveria ter dado meia volta, entrado em casa e nunca mais saído. Mas não foi o que fiz. Talvez eu já soubesse que não faria diferença estar ou não em casa. Não tenho mais tempo para refletir sobre. O fato é que continuei o caminho até o mercado perto daqui de casa, e a cada passo dado eu sentia minha respiração pesar, minha visão turvar e minha barriga revirar. Em algum momento, não aguentei mais e parei para retomar a consciência. Foi quando percebi que estava imerso em um silêncio sepulcral, e que a rua estava completamente deserta, com exceção dele e daqueles olhos âmbares cravados em mim.


O lobo estava a apenas alguns metros e, dessa vez, havia algo diferente, não só nele como em mim também. A criatura ainda se vestia da escuridão da meia-noite e tinha o mesmo ar terrível, só que dessa vez os olhos não estavam só famintos, mas também carregavam uma decisão final a respeito do meu destino. Já eu estava paralisado com um medo inédito até para mim, que eu sentia nas minhas entranhas, no meu sangue e nos meus ossos. Quando nossos olhos se encontraram, ambos tivemos a certeza de que a caça havia chegado ao fim. 


Só agora, encarando de frente meu pior pesadelo, é que eu entendi que minha corrida havia sido sempre em vão. Se correr, o bicho pega. Finalmente, reconheço em meu suor, em minhas pernas bambas e em meu olhar insano uma fuga desesperada que nunca foi parte de uma luta pela sobrevivência possível, e sim a precisa conduta de uma presa derrotada, que corre motivada exatamente pela inexistência de salvação. Minha derrota estava consumada no momento que, no jardim da casinha bege de muro baixo, dei o primeiro passo para evadir um destino inescapável.


Se correr, o bicho pega, se ficar, o bicho come.


E eu não aguento mais correr.



Autoria: Pedro Augusto Castellani Rolim

Revisão: Anna Cecília Serrano

Imagem de Capa: Moonlight, Wolf (Frederic Remington, 1909)


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