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SERÁ O AVANÇO DAS FAKE NEWS A MORTE DAS DEMOCRACIAS MODERNAS?



Nos últimos dias, você certamente leu ou ouviu algumas notícias sobre a situação do Rio Grande do Sul. Porém, quantas dessas notícias eram verdadeiras? Muitas informações altamente propagadas, como as proibições da Anvisa à entrada de remédios no RS, de doações sendo retidas pela Agência Nacional de Transportes Terrestres e do presidente Lula ter recusado ajuda do Uruguai para os resgates, são falsas [1]. Em algum momento, todos nós provavelmente recebemos alguma informação falsa e nem sequer percebemos. 


A desinformação se tornou endêmica e sofisticada. As campanhas de notícias enganosas que antes estavam concentradas nos períodos de eleição agora se tornaram uma constante nas democracias como o Brasil. As fake news absurdas, antes com a capacidade de convencer apenas as pessoas mais deinformadas sobre tecnologia e política, agora se refinaram e conseguem penetrar os mais variados grupos sociais. O avanço da inteligência artificial e dos deepfakes torna quase impossível diferenciar um vídeo, foto ou áudio fabricado de um verdadeiro. A verdade e a mentira se tornam cada vez mais indistinguíveis, e com isso surge a pergunta: como é possível votar consciente numa sociedade onde não se consegue distinguir o real do fake? Em qual fonte de informação confiar quando até mesmo a mídia tradicional transmite algumas fake news, seja por engano genuíno ou por agenda política? Ainda existe esperança para que as democracias modernas se sustentem em meio a epidemia global de desinformação?


O mundo enfrenta atualmente uma erosão democrática, e ela não é fruto apenas da desinformação. A onda de democratização que atingiu o globo após a Guerra Fria já chegou ao fim. Segundo dados da Freedom House, o planeta vem enfrentando uma recessão democrática desde 2006, com cada vez mais países declinando em liberdades democráticas [2]. Isso não significa necessariamente uma explosão de autocracias pelo mundo, mas indica uma tendência de ascensão dos regimes híbridos, que combinam características de ambos [3]. Esse processo é fruto de vários fatores domésticos e internacionais, como a ascensão de ideais populistas e ultraconservadores. A epidemia de fake news acelera esse processo ao erodir a confiança do público na democracia.  


Diversas pesquisas como a da Freedom House já indicam os efeitos danosos das fake news para a confiança da população nas instituições democráticas. Esses efeitos atuam em duas dimensões: primeiro, muitas pessoas passam a duvidar da credibilidade eleitoral, acreditando em fake news sobre fraudes nas urnas que minam a credibilidade do governo eleito como real representante da maioria. E segundo, mesmo os eleitores que acreditam na integridade das eleições perdem o respeito pelos processos democráticos por crerem que os resultados são fruto de eleitores mal-informados e manipulados, que elegeram os representantes nacionais com base em suposições falsas. Assim, eles passam a desacreditar na capacidade da democracia de gerar bons resultados, já que a qualidade das leis e políticas públicas depende de quão corretas são as crenças que as motivam [4]. Sentimentos como esse contribuem para reduzir o engajamento cívico da população na política – que é essencial para o bom funcionamento da democracia – e criam aspirações golpistas em eleitores mais radicalizados, culminando em tentativas de golpe como o ataque ao Capitólio dos Estados Unidos (EUA) em 6 de janeiro de 2021 e o ataque ao Congresso Nacional Brasileiro de 8 de janeiro de 2023.


Para entender melhor a escala da descrença nas instituições democráticas, analisemos alguns dados desses dois países. Nos Estados Unidos, cerca de ⅔ dos eleitores republicanos e aproximadamente 3 em cada 10 estado-unidenses acreditam que as eleições presidenciais de 2020 foram fraudadas, e que Biden foi ilegitimamente eleito [5]. Um estudo da ABC News com o Washington Post demonstra que apenas 20% dos eleitores dos EUA se sentem “muito confiantes” sobre a integridade eleitoral do país. Complementarmente, uma pesquisa da CNN indicou que 56% dos respondentes dos EUA possuíam “pequena ou nenhuma confiança” que o resultado das eleições de fato representavam a vontade do povo [6]. Já no Brasil, uma pesquisa de opinião da Atlas Intel indica que 38,2% dos brasileiros respondentes acreditam que Lula não venceu de fato a eleição, havendo fraude contra Jair Bolsonaro. Mas pelo lado positivo, a mesma pesquisa indica que 59% dos respondentes acreditam que a invasão de 8 de janeiro foi completamente injustificada. Porém, dados mais recentes indicam que impressionantes 47,3% dos brasileiros acreditam que o Brasil atualmente vive sob uma ditadura do judiciário. Uma ideia tão absurda que só é possível crer nela sem entender o real significado de ditadura.  


As crenças enumeradas acima são fruto das campanhas massivas de fake news para deturpar a realidade. Ademais, elas demonstram também que a direita política tem sido, em geral, mais habilidosa no campo da desinformação que a esquerda – embora proponentes de todo o espectro político produzam e espalhem fake news. A contribuição das fake news para espalhar essas crenças é demonstrada por um relatório da NetLab em conjunto com a UFRJ, que analisou mais 180 mil mensagens no telegram e 115 mil mensagens no WhatsApp no primeiro turno das eleições de 2022 [7]. O relatório expõe a orquestração multiplataforma e teste de mensagens para maximizar o efeito e alcance da desinformação, e identificou as principais narrativas das fake news mais compartilhadas no período analisado. Foram elas: associar candidatos a apelos anti-cristãos, associar o Lula e o PT ao PCC, desacreditar os resultados de pesquisas de intenção de voto, e desqualificar a validade do sistema eleitoral – ou seja, espalhar narrativas de fraude, contagem paralela de votos, e criticar o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). 


Em suma, considerando os fatos expostos acima, é seguro argumentar que há pouca esperança para a sustentação das democracias modernas se não forem criados mecanismos que efetivamente contenham a epidemia de desinformação. Mas qual é a perspectiva de combater as fake news, e será que essa é uma possibilidade factível? Atualmente, três tentativas principais de solução existem: Fact Checking, educação midiática, e regulamentação das redes sociais. No atual estado em que se encontram, elas ainda são insuficientes para conter a desinformação generalizada. Contudo, é possível que elas se tornem mais robustas com o tempo. Abaixo, destaco os atuais desafios que cada uma enfrenta.


A tentativa de solução mais comum até o momento tem sido a propagação de mecanismos de Fact Checking, dedicados a verificar informações em sites e redes sociais. Embora essa técnica seja muito útil, ela evidentemente não está conseguindo conter o problema sozinha. Devido à sua dependência da verificação manual de humanos, ela é incapaz de endereçar rápida e efetivamente as fake news divulgadas por bots, em massa, a todo momento, em canais diversificados. Assim, a inteligência artificial é atualmente um agravante do problema. Contudo, a IA pode ser também uma solução, caso seja possível programá-la efetivamente para identificar e neutralizar fake news em tempo recorde. Para nivelar a luta, é útil colocar bot vs. bot para digladiarem-se pela atenção dos usuários das redes. 


Esse fenômeno de criar e espalhar discursos falsos em grande volume, repetitivamente e sem consistência é conhecido como firehosing, termo cunhado em 2016 para descrever a estratégia de desinformação do governo de Vladimir Putin [8]. A analogia com a mangueira de incêndio faz alusão ao volume e à força da disseminação de notícias mentirosas. Outras características do firehosing são a falta de comprometimento com a verdade ou com a consistência interna das narrativas espalhadas na mídia. Assim, enquanto o Fact Checking esclarece uma fake news, outras centenas já foram espalhadas. Por isso, especialistas como os próprios criadores do conceito de firehosing, a psicóloga social Miriam Matthews e o cientista social Christopher Paul, afirmam que não basta desmentir fake news – é necessário que haja educação midiática para expor como opera a produção de desinformação [9] e preparar o público que as recebe, para que suas mentes sejam menos férteis para desinformação. Assim, torna-se necessário educar o grande público sobre como consumir informação, notícias e memes de maneira crítica e consciente. 


Por fim, a regulamentação das fake news é um dos passos mais essenciais para combatê-las, mas tem sido especialmente difícil. Aqui no Brasil, as tentativas do Supremo Tribunal Federal (STF) de criar regulações para as Big Techs, as grandes empresas de tecnologia que controlam as redes sociais, e pedidos de remoção de contas e postagens têm enfrentado grande resistência. Essas tentativas vêm inclusive sendo combatidas com mais fake news, em especial através do discurso de “censura do STF”. O apelo ao discurso de censura é poderoso, pois pega muito fácil entre o público bolsonarista, que já demonstrou ter dificuldade de estabelecer noções coerentes de liberdade. Entrevistas com manifestantes em atos bolsonaristas, os mostram comumente associando liberdade de expressão com discurso de ódio e defendendo que no período de ditadura havia maiores liberdades cívicas. Como consequência, muitas das contas propagadoras de fake news que foram bloqueadas por decisão do STF voltam e conseguem instrumentalizar esse fato para alavancar seu alcance e popularidade. Um levantamento do Intercept Brasil, produzido a partir de informações extraídas dos 85 despachos sigilosos do STF, TSE e TREs (Tribunal Regional Eleitoral) mostra que ao menos 22 contas que foram bloqueadas pelo STF já voltaram ao X (antigo Twitter), e ganharam até 300 mil seguidores utilizando do discurso de censura. Somadas, elas têm mais de 13 milhões de seguidores para os quais propagam fake news diariamente. Logo, percebe-se que as atuais tentativas de regulamentação das fake news no Brasil tem tido resultados contra produtivos, e também enfrenta dificuldades em outros lugares do mundo. Ainda há um longo caminho a percorrer [10].


Diante do exposto, conclui-se que a capacidade de sobrevivência das democracias modernas dependerá largamente da evolução dos mecanismos anti-desinformação, que devem ser capazes de melhorar mais rapidamente que seus rivais, que seguem se aperfeiçoando dia após dia. Embora atualmente a IA potencialize os efeitos danosos das fake news, ela também pode ser utilizada como um poderoso instrumento contra a sua disseminação. Adicionalmente, o cenário da resistência à regulamentação das redes sociais pinta uma perspectiva pessimista sobre o futuro democrático no Brasil e ao redor do globo. Se o curso atual não mudar, a tendência de democracias tornarem-se regimes híbridos - que mesclam características democráticas com ditatoriais - deve prevalecer globalmente.



Autoria: Mariana Coliath

Revisão: André Rhinow e Enrico Recco

Imagem de capa: José Cruz/Arquivo/Agência Brasil


 

Referências:

[2] Diamond, L. (2020). Breaking out of the democratic slump. J. Democracy, 31, 36.

[3] Burnell, P., & Schlumberger, O. (2014). Promoting democracy–promoting autocracy? International politics and national political regimes. In International politics and national political regimes (pp. 1-15). Routledge.

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