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SÃO PAULO NÃO ANDA PARA FRENTE

São Paulo tem, famosamente, um dos piores trânsitos do Brasil. Está entre as cinquenta piores cidades no mundo nesse quesito, e os paulistanos perdem, em média, 29% mais tempo em seus trajetos diários devido a engarrafamentos [1]. Isso não é por acaso: é consequência inevitável da formação histórica da cidade, marcada por um processo de intenso espraiamento, forte segregação espacial e graves lacunas no seu sistema viário e de transporte público. Uma das características formativas da metrópole paulistana, além da segregação residencial e do deslocamento de áreas residenciais para locais despovoados e sem atributos urbanos essenciais [2], foi a expressiva desarticulação do transporte público. O desenvolvimento do transporte coletivo em São Paulo não seguiu uma trajetória linear; pelo contrário, foi marcada por idas e vindas, progressos e retrocessos.


No início do século XX, os bondes dominavam a paisagem paulistana. Contudo, durante a gestão de Prestes Maia, nos anos 1930, esse cenário começou a mudar com a ascensão dos ônibus e a implementação do plano de avenidas do prefeito. Inclusive, foi uma equipe dirigida pelo polêmico Robert Moses — nome de peso na história do urbanismo — que defendeu a expansão das rotas de ônibus e a utilização das recém-inauguradas marginais Pinheiros e Tietê como vias expressas [3]. Durante essas décadas, São Paulo e o Brasil assistiram ao apogeu do paradigma rodoviarista, marcado pelo sucateamento das linhas de bonde, totalmente extintas em 1968, e pela expansão a passos largos da infraestrutura voltada para carros. Era a concepção urbanística predominante na época; basta olhar para o Plano Piloto de Brasília, totalmente centrado no automóvel como exemplo máximo de modernidade e desenvolvimento — e também totalmente hostil a pedestres.


Ao mesmo tempo, a metrópole enfrentava uma explosão habitacional, o que levou a um aumento de 120% nas viagens internas entre 1960 e 1977. Com o aumento da frota de automóveis, o sistema baseado quase exclusivamente nos ônibus passou a enfrentar problemas de congestionamento. Apesar da introdução do metrô em 1974, a expansão inicial desse modal foi bastante limitada, de forma que o ônibus permaneceu como a peça-chave do transporte coletivo na cidade. Desde os anos 1980, houve um esforço de municipalização dos ônibus, com sistema de subsídios para as concessionárias, visando lidar com a concorrência de operadores irregulares [3].


A partir dos anos 2000, as maiores mudanças nesse sistema, além da expansão do metrô e a consolidação da CPTM, foram a adoção do Bilhete Único e a criação dos corredores de ônibus, ambas implementadas pela gestão da prefeita Marta Suplicy (PT). Essas iniciativas contribuíram para melhorar a integração e a eficiência do transporte público. Apesar desses avanços, a maior parte dos recursos continuou destinada a obras viárias para transporte individual, com projetos como o Rodoanel e a ampliação da Marginal Tietê [3]. Desde então, outra iniciativa de destaque foi a expansão da malha cicloviária da cidade, iniciada na gestão Gilberto Kassab (PSD), mas que virou um emblema de Fernando Haddad (PT) à frente da prefeitura (2012-16). Durante sua gestão, São Paulo atingiu mais de 400 km de ciclovias, que, à época, foram duramente criticadas pelo seu alto custo por quilômetro e tornaram-se alvo de denúncias do Ministério Público por superfaturamento [5]. Desde então, o avanço tem sido pífio. Na atual gestão de Ricardo Nunes (MDB), prometeram-se mais 300 km de ciclovias até o final de 2024, mas apenas um terço disso foi entregue. Pior, levantamentos feitos por grupos independentes indicam que cerca de 60 km foram retirados ou apagados. Além disso, de acordo com a Secretaria Municipal de Mobilidade e Trânsito, apenas 8,4% das ciclovias paulistanas passaram por manutenção desde 2023 [6].


Ou seja, parece que as últimas grandes inovações em mobilidade urbana na cidade de São Paulo ocorreram há mais de vinte anos, com avanços pontuais em gestões posteriores. Em anos recentes, a priorização do carro tem se agravado: o recapeamento de vias consumiu cerca de R$1,4 bilhão dos cofres públicos no último ciclo eleitoral sob Nunes [7], dos quais R$546 milhões foram oriundos de um remanejamento de recursos que está sendo investigado pelo Ministério Público por denúncias de ilegalidade [8].


O mais grave, no entanto, tem sido a redução da frota de ônibus da cidade, com um corte de 20% no número de viagens de ônibus e de 16% na frota entre 2019 e 2023, segundo o Instituto de Defesa dos Consumidores [9][10]. Essa redução faz com que a população tenha que esperar mais tempo e pegar ônibus mais lotados, diminuindo a atratividade do transporte público e, portanto, incentivando o uso do carro. De acordo com Annie Oviedo, analista de mobilidade urbana do Idec, esse quadro de substituição do transporte coletivo pelo individual pode levar ao aumento da tarifa do ônibus, visto que a diminuição no número de passageiros acarreta uma perda de receita para as empresas, que então elevam o custo da passagem em uma tentativa de recuperar a arrecadação [10]. O argumento de que a demanda caiu devido à pandemia de Covid-19 não se sustenta mais, visto que, em outubro de 2024, ocorreu o recorde de passageiros no pós-pandemia, enquanto a frota segue caindo, com um saldo negativo de 800 ônibus em comparação com o período anterior a março de 2020 [11].


São Paulo parece estar parada no tempo. Enquanto metrópoles ao redor do mundo se esforçam para tirar carros das ruas, a Pauliceia se contenta em recapear ruas e diminuir a frota de ônibus. O máximo que se vê da prefeitura é o investimento em ônibus elétricos, que não passam de um band-aid sobre a ferida aberta que é o trânsito e a poluição de São Paulo. Os mecanismos do Plano Diretor para o adensamento populacional em torno do transporte coletivo de massa são lentamente esvaziados pela Câmara Municipal [12], e a maior metrópole do hemisfério sul está ficando cada vez mais para trás nas grandes questões do urbanismo do século XXI, sem sequer ter resolvido as do século anterior.


“A cidade na tradição brasileira acaba por não ser muita coisa além de um amontoado de coisas privadas”, escreveu Emicida no prefácio do livro São Paulo: O planejamento da desigualdade, de Raquel Rolnik [13]. O que falta em São Paulo é justamente a coisa pública, a tal res publica da república que, teoricamente, somos. Enquanto a prefeitura continuar investindo em infraestrutura para veículos particulares e esvaziando políticas que melhoram o transporte público, não há qualquer esperança. E nós continuaremos presos no trânsito.


Autoria: André Rhinow

Revisão: Giovana Rodrigues, Arthur Quinello e Artur Santilli

Imagem de capa: Ettore Chiereguini/Estadão Conteúdo


Referências:


[1] BRASIL tem cinco cidades entre as mais congestionadas do mundo. Confederação Nacional do Transporte, 28 de set. de 2016. Disponível em: <https://cnt.org.br/agencia-cnt/brasil-tem-cinco-das-cidades-mais-congestionadas-do-mundo>. Acesso em 16 de mar. de 2025.


[2] MEYER, Regina et al. São Paulo Metrópole. São Paulo: Edusp / Imprensa Oficial, 2004. Cap. 02: A construção da metrópole paulista.


[3] ROLNIK, Raquel; KLINTOWITZ, Daniela. (I)mobilidade em São Paulo. In Estudos Avançados, Vol. 25, nº 71, 2011.


[4] BASSO, Gustavo. Ciclovias em SP: legado positivo supera defeitos. Mobilize Brasil, 11 de fev. de 2022. Disponível em: <https://www.mobilize.org.br/noticias/13036/ciclovias-em-sp-legado-positivo-supera-defeitos.html>. Acesso em 18 de mar. de 2025.


[5] LARA, Walace. Fernando Haddad vira réu em ação de improbidade por irregularidade em ciclovia. G1, 21 de3 ago. de 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2018/08/21/fernando-haddad-vira-reu-em-acao-de-improbidade-por-irregularidade-em-ciclovia.ghtml>. Acesso em 18 de mar. de 2025.


[6] IORY, Nicolas. Nunes conclui primeiro mandato sem cumprir meta de ciclovias e com manutenção em menos de 10% da malha. O Globo, 26 de dez. de 2024. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/sao-paulo/noticia/2024/12/26/nunes-conclui-primeiro-mandato-sem-cumprir-meta-de-ciclovias-e-com-manutencao-em-menos-de-10percent-da-malha.ghtml>. Acesso em 18 de mar. de 2025.


[7] SOUZA, Monise. Recapeamento de vias em período eleitoral chama atenção de moradores em São Paulo. Gazeta de S. Paulo, 25 de set. de 2024. Disponível em: <https://www.gazetasp.com.br/cotidiano/recapeamento-vias-periodo-eleitoral-chama-atencao-moradores-sao-paulo/1143774/>. Acesso em 19 de mar. de 2025.


[8] FERREIRA, Zeca. MP vai investigar Prefeitura de SP por remanejamento de verbas para recapeamento de vias da cidade. Terra, 10 de jun. de 2024. Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/mp-vai-investigar-prefeitura-de-sp-por-remanejamento-de-verbas-para-recapeamento-de-vias-da-cidade,129a9c8935afd08ea829bb93253cf641kxn7ulq1.html?utm_source=clipboard>. Acesso em 19 de mar. de 2025.


[9] FREITAS, Hyndara. São Paulo teve corte de 20% de viagens de ônibus nos últimos quatro anos, aponta Idec. O Globo, 29 de set. de 2023. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/sao-paulo/noticia/2023/09/29/sao-paulo-teve-corte-de-20percent-de-viagens-de-onibus-nos-ultimo-quatro-anos-aponta-idec.ghtml>. Acesso em 19 de mar. de 2025.


[10] PREFEITURA de São Paulo reduziu viagens de ônibus em 20% desde 2019, revelam ONGs. Idec, 5 de out. de 2023. Disponível em: <https://idec.org.br/release/prefeitura-de-sao-paulo-reduziu-viagens-de-onibus-em-20-desde-2019-revelam-ongs>. Acesso em 19 de mar. de 2025.


[11] CARDOSO, William. Recorde de passageiros e frota em queda lotam ônibus em São Paulo. Metrópoles, 21 de nov. de 2024. Disponível em: <https://www.metropoles.com/sao-paulo/recorde-de-passageiros-e-frota-em-queda-lotam-onibus-em-sao-paulo>. Acesso em 19 de mar. de 2025.


[12] BONDUKI, Nabil. O adensamento populacional é necessário, mas a verticalização precisa ter limites e respeitar a memória e o ambiente de São Paulo. In Estudos Avançados. Vol 38, nº 111, 2024.


[13] ROLNIK, Raquel. São Paulo: O planejamento da desigualdade. São Paulo: Fósforo, 2022.


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