Tem um corpo caído no chão.
Tem um corpo caído no chão
no meio da estação.
Mas estamos na República às 19h53. Na República, os corpos que andam não param só porque tem outros corpos no chão. Eles continuam, pisoteiam e massacram o corpo no chão — hoje, com olhares.
Tem um corpo caído no chão da estação.
Às 19h53, um horário cheio demais para que os passageiros não pensem em deixar que outra pessoa ajude o corpo. Todos têm pressa em voltar para casa. Eu olho e penso: “vou chamar um segurança, é o máximo que posso fazer por essa pessoa”. O próximo passageiro passa e pensa “vou chamar um segurança, é o máximo que posso fazer por essa pessoa”. Todos pensam em chamar alguém, a pessoa torna-se apenas corpo e ninguém pensa em abordar o corpo para ver se ele está bem.
Tem um corpo caído no chão da estação.
Às 19h53, um horário que não é de pico. Fora do horário de pico, os metrôs não ficam tão cheios para que as pessoas se incomodem e queiram retirar uma pedra do meio do caminho. As pessoas não querem que o corpo saia dali porque elas podem apenas desviar e seguir seu caminho. Qual será o caminho daquele corpo?
Em horários mais vazios, conseguimos notar grandes atos nas estações, mas… você notou? Eu notei, eu vi o corpo caído no chão da estação e segui para a baldeação — não me orgulho em dizer, mas saí olhando para trás e apenas chamei o segurança. É que notar é diferente de tomar alguma atitude.
Todos os dias vemos pessoas em queda, suplicando por ajuda, e não erguemos o braço, não abrimos o bolso e não voltamos para onde não for conveniente. Você já viu um amigo insistir para beijar uma garota, mesmo após um “não”. Você já percebeu que mulheres são julgadas pelo que vestem, mas seu maior ato foi não apontar o dedo. Você já deve ter visto atos de racismo e concluiu que eram estruturais demais para serem incendiados. Você fingiu que não sabia de algo que já tinha estudado — é, algumas dores só sentimos quando vivenciamos. Você já pulou na bala por alguém que não fosse um reflexo de você mesmo? Não vale fingir neutralidade só porque você tem medo.
Tem alguns corpos caídos no chão da estação.
Olhando para esse cenário, eu poderia dizer que ainda estou na República. Mas já cheguei na Consolação, espaço onde tantos corpos caem, enquanto as regiões mais chiques mascaram-o com o nome: Paulista. Tenho medo desse jeitinho brasileiro que, desde antes de 1889, acha normal deixar corpos pelo chão, pelos cantos, na sobrevida.
Troco de linha e ainda vejo corpos. Tem pessoas entrando e saindo dos vagões, tem pessoas que não sabem sua direção; tem pessoas caindo ao se aproximar da Paraíso, tem corpos no chão no meio da estação. Não tem linha que mostre sinal verde para alguns tipos de corpos, sequer há passagem que pare em suas mãos.
Tem alguns corpos caídos no chão,
Sem passagem, eles caíram na contramão.
E eles tentam nos esconder por meio de belezas como o Masp, mas eu desço para a 9 de julho e ainda vejo mais corpos no chão do que no alto de edifícios espelhados. Você já parou para ver se um corpo ainda não tinha parado? Ao atravessar a rua, somos atravessados por pessoas que gritam, mas escolhemos ouvir o som dos corpos que não caem. É que ninguém para porque alguém está no chão.
Chego no alto de um prédio e, pelo décimo segundo andar, já não vejo corpos. Se olho da janela, estão todos mortos. Triste realidade em que tantos sobem deixando corpos no chão. Tem corpos caindo o tempo todo e a gente não ajuda se estamos de pé.
São 20h23 e os corpos que andam já nem notam mais os corpos no chão. Mais cedo, eram 9h35 e os corpos que andam ainda não paravam só porque tinham corpos no chão. A todo momento, atropelamos corpos, almas e ideias.
Hoje eu vi mais um corpo caído na estação, mas ninguém fez nada
porque o caminho do corpo lhe era contramão.
Autoria: Ana Cristina R. Henrique
Revisão: Enrico Recco e Artur Santilli
Imagem da capa: arte de Madu Espindola.
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