(Música para a leitura:
Canção Pra Você Viver Mais – Pato Fu)
“Hoje, mamãe morreu”. Calma, minha mãe está muito bem, vivinha da silva, mas eu acho essa frase, a abertura de O Estrangeiro, de Albert Camus, fascinante em todos os sentidos (e uma ótima forma de começar um texto, te coloca na ponta da cadeira e você ainda nem sabe o nome do personagem). “Aujourd’hui, maman est morte”, em francês fica melhor ainda. Mas o que ela tem de tão especial assim, você me pergunta? No livro, seu objetivo é de começar a mostrar como o personagem principal, Meursault, é apático quanto à sua vida e não vê muito sentido em nada, por isso trata tudo com mundanidade, como se fosse só mais uma terça-feira qualquer. “Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: ‘Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames.’ Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem”. Tudo um pouco mórbido, não? Pesou o clima..., mas eu (quase) sempre tenho um bom motivo para (quase) tudo! Eu gosto de ler essa frase e pensar na efemeridade, tudo vai e tudo vem. Tudo passa, mas a vida segue em frente apesar disso e nós vivemos, alguns sem nem saber das tragédias que acontecem no dia a dia. Mas pera, deixa eu me explicar, vai ficar melhor, eu prometo.
Recentemente tivemos a semana do Nobel, uma semana em outubro na qual a cada dia sai a notícia de um Prêmio Nobel diferente. Medicina, Física, Química, Literatura, Paz e, na segunda-feira seguinte, o de Economia (coitados dos economistas). Pessoalmente, fico mais animado para ver o de Literatura. Se tornou um ritual agendar em meu calendário o momento exato, sempre às 13h CEST, ou 8h da manhã por Brasília, para poder ouvir serem pronunciadas palavras suecas incompreensíveis e um nome que ficará, desde aquele momento, estampado nas vitrines de todas as livrarias do mundo por mais ou menos uns 6 meses, até chegar o Jabuti, o Pulitzer, e enfim o outro Nobel. Fiquei tão fanático a um ponto de aprender um básico de sueco para que eu pudesse receber a notícia ao mesmo tempo que eles, mas não deu muito certo porque (surpreendentemente) não é uma língua tão fácil! Mas tá certo, tem que ser original e complexa mesmo, eles estão no direito.
Já vi Bob Dylan, Louise Glück, Abdulrazak Gurnah, Annie Ernaux, Jon Fosse e a mais nova imortal do Nobel: Han Kang. “Por sua intensa prosa poética que confronta traumas históricos e expõe a fragilidade da vida humana.” Muito chique. Desde Annie (já temos uma certa intimidade, sabe como é), eu me comprometo a ler pelo menos uma das obras do(a) ganhador(a) daquele ano (como se eu tivesse moral para julgar se a decisão foi acertada ou não) e me fascino com a genialidade da maioria deles. E pensar que não obstante eles já serem ótimos escritores, nos demos ao trabalho de criar uma festa, uma pompa cerimonial, para anunciar a todo o planeta que sim: essa pessoa é certificadamente um máximo. Que emocionante!
Mas de onde viria essa nossa pujança por uma memória tão enfática? Em outras palavras: e daí que essa pessoa sabe escrever? Eu também gostaria de receber 5 milhões de reais para cada texto da Gazeta, e daí? Porém, estamos perdendo o ponto disso tudo (e o caixa da Gazeta, infelizmente, ainda não tem a capacidade orçamentária para tal feito). Fazemos toda a pompa, a festa, o dinheiro e o reconhecimento por conta de um bichinho que nos impregna por detrás de nossas orelhas. Você pensa muito nele durante seu dia-a-dia, mas não percebe de tão acostumados que ficamos…
A morte é um troço assustador, ninguém pode negar, me dá calafrios só de mencionar e às vezes penso um pouco demais nisso, mesmo sabendo que não devia. Nossa angústia com a morte, como humanidade, nos tornou desesperados por um jeito de vencê-la. Quando nos demos conta de que não poderíamos, partimos para então aumentar nossa esperança, menosprezar esse pedaço inegável da vida. Nos enchemos de certezas, crenças, pensamos que o fim vai demorar muito para chegar. Pensamos que, na verdade, nunca realmente morremos se nunca fomos esquecidos. Boom! Eis a tão grande ideia de um legado, algo que fica quando nós já não restamos. Algo que tomamos como dado, mas não é lá muito natural.
Mas então o que é isso? Somente alguns de nós tem o privilégio da imortalidade? Que coisa é essa? De onde vêm a honra nisso? Os méritos do Nobel a gente pode discutir depois da forma mais civilizada e digna que eu consigo pensar: depois de um dia de aula, em uma mesa de bar, dividindo uma cerveja enquanto gritamos e exalamos fortemente tudo que pensamos sobre tudo. Me deu até sede agora. Mas o ponto desse texto não é falar do Prêmio Nobel (meus amigos já sofreram demais me ouvindo matraquear sobre isso), ele serve para pararmos para ver que, finalmente, ganhamos! A morte já não nos assusta mais! (Mentira, me assusta muito, mas vamos fingir que não por alguns minutos). Ainda não descobrimos tudo sobre como funciona o cérebro humano e eu não sou biólogo para compreender o resto do reino animal, mas tenho a leve impressão de que somos únicos em nossa habilidade em perceber como o tempo passa e os momentos que ele leva consigo.
Tudo se encontra em um constante estado de movimento, inquietude, as coisas passam sempre. O legado, a permanência da memória de alguém, não é algo comum, mas é o tipo de atitude que cai no rol das atividades ilógicas e estranhamente deliciosas. Na verdade, eu diria que ela é mais do que isso: é nostálgico, é honroso e é humano. Legados não são somente as grandes demonstrações, as placas de prata, as estátuas e os nomes de prédios. Legados são acima de tudo pessoais, mas intensos. As marcas deixadas por pegadas históricas em um território, palavras eloquentes em livros de literatura e invenções que rebimbocam a parafuseta não são páreos para um simples gesto de amor. Você ainda gosta de contar aquela piada que o seu pai sempre te contou, você ainda repete aquela frase da sua mãe, ainda repete os maneirismos dos seus avós. Ainda incorpora as maneiras de pensar dos seus amigos e de outros que te inspiram. Ainda repete tradições criadas por pessoas que nem conheceu com a maior alegria, mas nem imagina o impacto que fazer tudo isso possui.
Já ouviu Pato Fu? Caso não, primeiramente, como ousa? Depois, tome uma oportunidade e escute Canção para você viver mais e mais importante: preste atenção na letra de John Ulhoa e Lenis Rino. Um tempo antes dela ser gravada, o pai da Fernanda Takai, vocalista do Pato Fu, havia falecido vítima de um câncer de pulmão, mesmo nunca tendo sido fumante. Em uma entrevista ao programa Provoca em 2022, ela contou que tinha escrito apenas o título da música em um pedaço de papel, mas não estava com a cabeça para escrever a música de fato, então John, o guitarrista da banda e seu marido, pegou o fio da meada e compôs essa ode ao pai de Takai. Eu destaco duas coisas importantíssimas desta canção: primeiro, a genialidade com a qual uma memória de luto pôde ser transformada em uma demonstração de admiração e amor de forma tão fluida e carinhosa mostra que, quando nos empenhamos, os legados que deixamos são capazes de criar uma marca profunda e sentimental naqueles ainda vivem. E em segundo lugar, mas nem um pouco menos importante, isso mostra como não somente as ações de uma pessoa criam um legado, mas nós podemos criar um legado para elas por elas, um último presente eterno.
Nem eu e nem você (eu acho) conhecemos o maravilhoso Sr. Takai, mas depois de ouvir essa música você se sente íntimo, próximo o bastante para sentir tristeza, mas também alegria de ter escutado sua história. “Não tenho muito tempo/ Tenho medo de ser um só/ Tenho medo de ser só um/ Alguém para se lembrar”. O legado não é tão somente uma forma de se lembrar de alguém, é a forma mais humana que possuímos de incorporá-los conosco, para sempre. Seja pelos seus atos, suas palavras, mas também por seus abraços, beijos e carinhos. Tornamos os outros muito mais do que somente “alguém para se lembrar”, se é que isso seria pouca coisa, os tornamos espíritos vivos e pensantes, que por mais que não habitem mais seus antigos corpos, permanecem em outros. Acho tudo isso brilhante, sabe? Uma das coisas mais humanas de uma humanidade que cada vez mais adentra o abismo da indiferença.
Tudo acaba e é sempre triste, mas tudo começa de novo e é sempre feliz. A morte, para além de suas desprezíveis e inconvenientes atribuições, nos permite deliciar a magia de um legado: uma memória imutável e, pelo menos enquanto a espécie humana durar, eterna. Um tesouro maior do que qualquer tipo de dinheiro, porque ele é genuinamente seu ou dos seus, e ninguém jamais poderá tirá-lo de você. Melhor do que isso: ele pode ser sentido pelos outros e apreciado por eles assim como por você, fazendo com que os outros, nem que por poucos instantes, entendam o que te compõe.
No começo deste ano, eu perdi meu avô e daqui a pouco (dia 18 de novembro, para ser mais exato) seria o seu aniversário de 79 anos. Aconteceu tudo tão rápido que eu mal pude processar, mas foi uma daquelas perdas que você não esperava, apesar de que sinto que ninguém quase nunca espera uma perda. Apesar de tudo, cansei de lembrar as inúmeras vezes em que dividi as suas histórias mirabolantes com os outros, desde o seu nome mais que original até seus hobbies e profissões que beiram o extraordinário. Acho que nunca me recuperarei completamente de tê-lo perdido, mas aí é que está: eu nunca o perdi, ele apenas deixou de habitar o seu corpo, mas agora habita em mim e nas várias pessoas com as quais tive a oportunidade de dividi-lo. E eu continuarei repetindo essas histórias até o dia em que outros terão de contá-la por mim e, se eu fizer do jeito certo, ele nunca será perdido.
Utilize da sua capacidade de criar legados e crie-os! Preencha esse mundo com memórias afáveis e saudosas daqueles que tanto merecem, deem um legado àqueles que foram Machados de Assis e Han Kangs, Tarsilas dos Amaral e Tomies Ohtakes, Fernandas Takais e Césares Lattes, mas também para todos aqueles que importaram para você pessoalmente, aqueles íntimos que agregaram tanto valor ao mundo assim como os grandes artistas e inventores. Lembrem-se, acima de tudo, dos Hermenegildos Reccos.
Pois é gente, é esse o nome dele. Curioso, não? Quer saber a história toda? Vamos tomar aquela cerveja que eu prometi no começo e divagar sobre a prepotência de um prêmio sueco, sobre um avô paraquedista e sua onça de estimação Tita e sobre como você nunca deve confiar no sorvete Ula-Ula que eu te conto todo o resto…
Nota do autor: Eu escolhi a música do Pato Fu como recomendação para o texto porque cai como uma luva, mas acho que ele se encaixa muito bem com a Heroes do David Bowie. Os heróis, afinal, podem vir de todas as formas. Recomendo também a crônica “Ornitorrinco” do colega Antonio Prata, uma ótima forma de rir na cara do perigo!
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Autoria: Enrico Romariz Recco
Revisão: André Rhinow, Artur Santilli e Vinícius Floresi
Imagem da capa: Acervo pessoal
Intimista e sensível! Amei o texto!