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TULIPAS



Hoje, eu comprei flores. Eram cinco tulipas coloridas com um caule comprido e apenas algumas folhas. Elas ainda estavam fechadas, mas, julgando pelo estado deplorável no qual as encontrei, sozinhas, no fundo de uma caixa de papelão suja no chão do mercado, não achei que elas iriam chegar a abrir completamente. Dava para ver que carregavam várias manchas, provavelmente por causa dos maus tratos que sofreram até chegarem ali.


Para ser honesta comigo mesma, não sei muito bem por que decidi comprá-las. As flores não eram tão bonitas e, mesmo após implorar muito à senhora de cabelos vermelhos que trabalhava no caixa, não consegui nenhum desconto por elas. Acredito que parte de mim sentiu pena das tulipas, mas não sei até que ponto é comum as pessoas sentirem empatia por plantas. Uma vez, li em algum lugar que nossos valores morais estão sempre conectados a um critério estético. Talvez isso seja verdade.


No fundo, acho que não foi a beleza das flores (ou a falta dela) que me intrigou. A verdade é que me senti presa em meio a toda uma melancolia repentina causada pela cena. Afinal era uma situação tão comum que, após ter notado as flores lá, não pude simplesmente ignorá-las.


Independente de qualquer que fosse a razão, levei as flores para casa. Após subir os inúmeros degraus que levavam ao meu apartamento, que ficava num predinho azul bem velho na esquina de uma das ruas mais movimentadas da cidade, fui logo buscar um vaso. A verdade é que, como tinha acabado de me mudar, sabia que não tinha nenhum. Tive que usar meu único copo como vaso, então só me restaria beber água na xícara preta que guardava no fundo do armário.


Acho que, no momento que coloquei aquelas flores na janela da minha cozinha, estabeleci uma espécie de promessa silenciosa de que faria de tudo para ver aqueles pequenos brotos se abrirem. Coloquei um post-it na geladeira para não esquecer de comprar um vaso decente na manhã seguinte e fui logo pesquisar no Google a forma correta de cuidar de tulipas… afinal nunca havia comprado flores para mim mesma antes.


Escolha um lugar sem muito sol. Molhe as pétalas com um borrifador apenas para umedecê-las, sem exagerar. Use um vaso de exatos 30 centímetros que tenha furos para a drenagem. Se for primavera, use um fertilizante líquido, mas se estiver no outono, opte pelos em pó.


Nesse momento, olhei para as tulipas. Claramente, aquele não era o lugar ideal. A janela da cozinha recebia todo o sol matinal e era uma questão de dias até as pétalas secarem. Decidi então colocar as flores em cima da mesa de centro da sala, assim os brotos poderiam receber indiretamente o sol da varanda e continuar em um ambiente fresco.


Fui dormir e, logo na manhã seguinte, passei numa lojinha de jardinagem que ficava algumas quadras abaixo da minha rua. Comprei os fertilizantes e o borrifador, mas não consegui achar o vaso ideal. Fui em mais três lojas, sem sucesso. Todos os vasos que encontrava eram pequenos ou grandes demais, e poucos continham o sistema de drenagem especificado pelo site. Acabei comprando um vaso qualquer e decidi encomendar o certo pela internet, o que provavelmente demoraria mais alguns dias para chegar.


Desse ponto em diante, acho que já da para imaginar como se seguiram meus dias… Acordava cedo, antes do sol nascer, apenas para borrifar os brotos com um pouco de água, até que eles ficassem cobertos de gotinhas miúdas espalhadas da maneira mais uniforme que conseguia. Assim, quando o primeiro raio solar atingisse as pétalas, elas já estariam preparadas.


Fazia então meu café e, ao invés de levar a xícara para o quarto como sempre fazia, criei o hábito de me sentar na mesa da sala para tomar a bebida. Então ficávamos assim, eu e as tulipas, embaladas em um silêncio confortável até que a última gota do líquido amargo passasse pela minha garganta. Sabia então que era a hora de me preparar para ir para a faculdade. Trocava de roupa e, no momento em que passava pela porta da cozinha, me virava apenas para sussurrar um “tchau” para as flores, que sempre me arrancava um risinho singelo ao imaginar se elas realmente iriam se importar com a minha ausência.


Meus dias eram preenchidos por uma sequência de atividades monótonas. Haviam dias nos quais pensava nas tulipas, imaginando se pelo menos algum dos brotos já haviam desabrochado. Outras vezes acabava me sentindo cansada demais para pensar em qualquer coisa que fosse, utilizando todas as minhas energias apenas para continuar cumprindo minhas tarefas de uma maneira quase que robótica.


Chegava em casa exausta e, ao passar pela portaria, perguntava para o Marcos se algum vaso havia chegado para o apartamento 2B. Ainda não, mas vou pedir para o porteiro da manhã ficar de olho para a senhorita. Era isso que ele sempre me respondia. Agradecia brevemente e subia as escadas devagar, com passadas curtas e pesadas, sentindo que, a partir daquele instante, não precisava mais esconder todo o meu cansaço.


No momento que abria a porta, ia imediatamente olhar as flores. Nenhum broto havia aberto. Tudo bem. Não é o vaso certo de qualquer forma. Fazia uma comida rápida e sentia as tulipas me julgarem por comer um macarrão instantâneo ao invés de uma refeição decente… não que eu me importasse com o que elas pensassem. Ia então para a dispensa e pegava uma garrafa de vinho para mim e um pouco de fertilizante para as tulipas. Como era inverno, não sabia muito bem qual tipo usar, já que o site só dava instruções para o outono e primavera… Por isso acabava revezando entre os dois que havia comprado.


Então, sentava no sofá com a minha taça de vinho barato. Uma vez, um amigo me disse que não faria mal investir um pouco mais nas garrafas que comprava. Ao sentir o gosto amargo do álcool de baixíssima qualidade rasgando a minha garganta, acho que ele tinha razão. Tomava sempre duas taças. Não mais que isso.


Ficava então olhando as tulipas, não sei exatamente por quanto tempo. Pensava nelas sozinhas naquela caixa, no fundo do mercado, vendo todas as outras flores sendo escolhidas por mulheres solteiras que desejavam enfeitar suas casas, por homens apaixonados que pretendiam presentear alguém especial, ou até mesmo por aqueles que estavam arrependidos e buscavam reconquistar um coração partido.


Acho que era assim que as tulipas se sentiam. Completamente sozinhas. Não é a toa que elas haviam murchado. Não há nada como uma mistura de solidão e tempo, junto com uma pitada de desespero, para fazer com que até a mais bela das flores perca seu perfume. De certa maneira, era reconfortante pensar que alguém mais se sentia assim, sabia que eu não podia ser a única. Me perdia nesses pensamentos até que sentisse que a exaustão estava tomando conta do meu corpo. Só aí apagava as luzes e ia dormir.


Minha rotina permaneceu assim por oito dias, até as tulipas morrerem. O vaso com o sistema de drenagem chegou exatos dois dias depois do trágico fim das minhas flores, e acabei dando ele de presente para o Marcos, que agradeceu imensamente, pois sua mulher adorava jardinagem e ficaria muito contente com o presente. Tem mais um borrifador e um resto de fertilizante no apartamento, amanhã trago pro senhor. Era o que eu dizia para ele quando chegava da faculdade, mas sempre esquecia de deixar os itens na portaria na manhã seguinte.


Gostaria de poder dizer que a morte das flores foi algo inesperado, e que elas estavam melhorando gradualmente até que em uma manhã acordei e vi as pétalas completamente secas. Mas não foi assim. Existem coisas que simplesmente estão condenadas ao fim, e não há nada que possamos fazer. Desde o momento em que botei os olhos naquelas tulipas, sabia que elas morreriam, e mesmo assim insisti cegamente que conseguiria fazer com que os brotos se abrissem.


Fui ingênua, eu sei… não me orgulho em dizer que chorei quando tive que jogar fora os restos do que um dia foram cinco tulipas coloridas. Entretanto, mantive o vaso vazio em cima da mesa da sala… vai que um dia decido comprar novas flores, dessa vez saudáveis, para poder cuidar, afinal, não posso negar que elas são uma ótima companhia.



Notas da autora:

Não use esse texto como um guia para cuidar de tulipas… Eu mesma nunca tive uma.


Autoria: Victorya Pimentel

Revisão: Artur Santilli e Anna Cecília Serrano

Imagem de capa: Natasha Reddy em Unsplash.com


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