De um pecado sonâmbulo, em uma sexta-feira, nasceu o primeiro carioca. Não se sabe ao certo onde, nem quando. Mas o pouco que se sabe já é muito. Dizem as boas línguas que o primeiro carioca tinha cheiro de mar e nasceu da areia. Dizem as más que foi filho do samba, síntese do encontro entre os prazeres carnais e amores reais que pernoitavam na Pedra do Sal. Ambas as narrativas disputavam os sentidos reais de um bicho híbrido, que tem corpo no dia e alma na noite, e embora discordem quanto ao nosso lugar no mundo, pacificam o folclore quanto aos nossos instintos: é na sexta-feira à noite que as esquinas ganham vida e os becos iluminam.
Mas isso já faz tempo. Há meses o carioca precisou ser amansado. Como muitas outras coisas, ser carioquíssimo em uma sexta-feira à noite tornou-se mais uma nostalgia e, em uma cidade que sempre dorme, preferiu, agora, ser chamado de janeiropolitano, porque assim soa mais urbano e menos dionísico. Antigas nostalgias já não cabem mais em nosso novo normal. Eu me lembro, contudo, do antigo carioca de sexta-feira à noite.
Ser sexta-feira à noite, na exata semântica do Rio de Janeiro, era suar água salgada e chorar água de coco depois de algumas caipirinhas na Lapa. Era carregar a ressaca da sexta-feira até o domingo, só para poder curá-la com feijoada, samba, pagode, e mais cerveja. Era cantarolar bossa pelas ruas do Rio e andar no asfalto como quem deixa pegada na areia. Era encher o copo com o litrão e já pedir pro consagrado descer mais uma. Era conviver com dois assuntos rotineiros e socialmente convencionais nos bares: amor e futebol. Era ressignificar ódio e paixão e criar algo verdadeiramente autêntico: o carioca ama e se comunica por meio do palavrão. Era temer a violência, mas estar acostumado o suficiente para ir do Centro à Zona Sul e fosse o que Deus quisesse. Era chorar um amor perdido no karaokê da Feira dos Paraíbas, cantando High School Musical com seus melhores amigos. Era desdenhar dos sotaques de todo o Brasil, e exaltar o nosso próprio. Mas calma, se o carioca implica, é porque ele ama.
Todos esses signos da sexta-feira à noite ilustram tempos cariocas que talvez não voltem mais. Um malandro à meia-noite, para quem vê de fora, pode parecer aviso ou premonição. Para nós, era a rotina das noites e dos bares. Ver malandros e malandras, vadiagens de corpo e inocências de espírito, em uma cidade maculada pelo caos urbano, pela desigualdade das classes e pelo cosmopolitismo. Nosso coração de eterno flerte desenvolve linguagens comuns numa sexta-feira à noite, e nela acontece o delírio tropical e utópico que incomoda aos reaças e que faz rir a juventude, num embalo maluco que só termina quando o sol levanta. Ou só depois, mesmo.
Com muito sentir, hoje o carioca é pela metade. O malandro que se via à meia-noite não mais pernoita como antes. A máscara que cobriu seu rosto bronzeado, tampou a boca que fazia rir e calou a língua que cismava em chiar. Algumas alegrias precisaram permanecer em casa, de quarentena. Outros signos da sexta-feira à noite sequer existem mais, e já não fazem mais parte do novo mundo. Junto com eles, foi-se a noite de sexta-feira, e veio a sozinhez de uma sexta-qualquer. Hoje, o que restou no copo é saudade de ser por inteiro no Rio de Janeiro.
Mas não tem problema. Se for de beber, a gente vira. Pode descer mais uma, por favor.
Foto da capa: Bao Luu
Bem minha malandra e Meia noite numca ouvi fala dela,Quando o ogam falou eu tentei ver e descobri mas nada acheia dela so uma listra que so apareceu o nome dela