
Nas sombras da sociedade, escondendo sua natureza ameaçadora, entidades desconhecidas emergem. Personificando os mais profundos temores sociais, esses seres misteriosos conseguiram assumir diferentes formas, se metamorfoseando para sua sobrevivência, sendo perseguidos por assumirem uma condição que não tiveram a autonomia de escolher, sua simples existência já manifesta um perigo para as estruturas moldadas. Uma descrição aplicável para qualquer criatura monstruosa e pitoresca do século XIX, mas no caso me refiro apenas a… Gays – o que é constantemente a mesma coisa para o cinema e para a literatura.
A ficção, dentre seus diversos poderes, tem a capacidade de dialogar com a realidade. Por meio da aplicação de códigos sociais em metáforas, conseguimos explorar tópicos que nem sempre são tão fáceis de abordar diretamente ou até mesmo permitidos. Olhando por esse ângulo, a forte relação entre a comunidade queer e o gênero do terror começa a ganhar sentido.
Ao longo da história, a comunidade LGBTIA+ achou no gênero do terror uma ferramenta para criar narrativas que espalhassem suas experiências carregadas de ostracismo e medo. Ao interpretar personagens monstruosos como metáforas para o julgamento e perseguição que pessoas queers vivenciam, figuras icônicas da literatura e do cinema no mundo do terror conseguiram adquirir uma dimensão humanizada e tornaram-se seres ainda mais complexos, conquistando, inclusive, a simpatia de muitos.
Acontece que nem sempre esses recursos literários do sobrenatural foram empregados para retratar a luta de um grupo para sobreviver a uma estrutura destinada a condená-lo; por vezes, serviram como o próprio mecanismo de condenação.
Em 1872, Sheridan Le Fanu lançava a clássica novela gótica sobre a vampira Carmilla, uma criatura que se alimenta especificamente de sangue de mulheres, em particular, da jovem Laura, com quem desenvolve uma relação de intimidade e obsessão. O intuito da obra era, na verdade, mais simples e direto: representar relações homossexuais como ameaçadoras. Independente do sentimento que nutrissem uma pela outra, essa relação não poderia existir sem tragédia, pois nenhum amor poderia livrar Carmilla da sua natureza predatória.
Duas décadas depois emergia o grande símbolo das criaturas vampirescas: Drácula. Criação de Bram Stoker que, segundo a pesquisadora Talia Schaffer no artigo “A Wilde Desire Took Me": The Homoerotic History of Dracula, compartilhava cartas de teor romântico com seu amigo Walt Whitman e começou a escrever a novela um mês após a prisão pelo crime de práticas homossexuais de um amigo próximo: Oscar Wilde.
Esse é um ponto muito importante na virada de jogo do uso de alegorias macabras para falar da comunidade LGBTQIA+: o momento em que a identificação com a arte se torna mais forte que os estigmas sobre ela. Isso passou a ser cada vez mais comum – em um tempo em que não era possível viajar por tópicos fora do padrão heteronormativo, a saída estava em conseguir se achar nessa estrutura, mesmo que a resposta estivesse no grotesco. Era vez dos autores queers contarem suas próprias histórias.
James Whale, um dos primeiros diretores assumidamente homossexuais, lançou em 1935 “A Noiva de Frankenstein”, sequência de seu filme inspirado no clássico de Mary Shelley. Usando de recursos cômicos, ele constrói uma dinâmica disfuncional entre o monstro e a noiva, criada a pedido da própria criatura para ser sua companhia. As coisas, no entanto, não saem como o esperado. A busca por aceitação é seguida por uma forte aversão ao ver alguém parecido com ele e, consequentemente, diferente dos demais. O filme então passou a ser interpretado por muitos como uma forma de Whale falar do isolamento e estranhamento que ele sentia como um homem gay em meio à sociedade na época.
Comunidades marginalizadas passaram a encontrar acolhimento no terror. O bizarro conquistou espaço de admiração entre aqueles que, mesmo sem o apelo sobrenatural, já eram vistos como tal. O sentimento de repressão foi substituído pelo impulso de provocação. A aceitação de que o desejo pode até ser, dos mistérios, o mais horroroso, mas “se sou, o jeito é ser”.
– I’m just a sweet travestite! From Transexual, Transylvania! – Grita um travesti de espartilho preto e meia arrastão.
O clima agora é outro.
Uma profunda onda de subversão varreu as telas dos cinemas. Diretores não apenas passaram a desafiar estereótipos de gênero e sexualidade, mas ousaram brincar com eles, como fez Jim Sharman em Rocky Horror Picture Show (1975). Abusando do absurdo e da extravagância, o conto apresentou para uma sociedade extremamente conservadora um cientista travesti determinado a criar o humano perfeito para saciar seus desejos. O choque e desconforto do público geral foi inevitável, mas, pela primeira vez, essa plateia já não era o alvo.
A abertura para explorar temas polêmicos de maneira explícita foi uma vitória importante para o cinema queer, e encontrou uma expressão notável no New Queer Cinema, movimento que emergiu no cinema independente na década de 1990, comprometido com temáticas queer e com a transgressão explícita de normas tradicionais do cinema — frequentemente moldadas sob a ótica heterossexual e cisgênero. No entanto, no terror, foi a presença do subtexto que aproximou comunidades marginalizadas das narrativas que o gênero contava. Esse recurso marcou o encontro do horror com as experiências de grupos historicamente ignorados e por isso permaneceu sendo explorado.
Assim, em 1985, o segundo filme da franquia clássica de terror slasher, Nightmare on Elm Street, foi lançado. Em um período marcado pela epidemia de HIV/AIDS, em que o Governo Reagan adotou uma postura de atribuir a culpa da doença à comunidade queer e ignorar o alto número de mortes de pessoas LGBTQIA+ em prol da vilanização, o filme dialogava por meio de metáforas com a situação dessas pessoas ainda mais marginalizadas.
O filme contava a história de Jesse, um menino que tentava resistir aos episódios de possessão por um monstro que, a cada vez que o garoto não conseguia impedir, tomava conta do seu corpo e cometia homicídios. Jesse inicialmente tentava esconder o que estava acontecendo por medo da reação das pessoas, mas, com o agravar da situação, procurou alertar a todos o que estava ocorrendo. Entretanto, foi constantemente ignorado, mesmo com o aumento de vítimas fatais ao seu redor.
Se realmente o filme foi feito com a intenção de ser um paralelo com o vivenciado pela comunidade LGBTQIA+ no momento da epidemia é um questionamento secundário. O fato é que a mensagem era inerente a ele: a estigmatização e o isolamento são tão fatais quanto a condição carregada por suas vítimas.
A história do terror evidenciou que monstros não precisam existir quando a sociedade tem a capacidade de selecionar grupos para assumirem esse papel. Se os recursos grotescos foram inicialmente manipulados para atacar uma comunidade, nada mais justo do que serem usados para contar a história dela.
O problema nunca residiu na representação em si, mas em quem detém o controle exercido sobre essas narrativas. Vilões podiam personificar indivíduos ou comunidades, desde que a representação fosse moldada pela perspectiva externa, comumente carregada de hostilidade, e não pelos próprios representados.
No entanto, o terror, quando nas mãos daqueles cujas experiências eram ecoadas por ele, se transformou em uma forte ferramenta de subversão. O desconforto do gênero não assombrava quem diariamente já lidava com o sentimento e naturalmente terminou por se tornar a tela em que a comunidade queer pintou suas próprias vivências, reivindicando essas narrativas com ousadia e, principalmente, com orgulho.
Autoria: Ana Lívia Lima
Revisão: Anna Cecília Serrano e Laura Freitas
Imagem de capa: Cena do filme Rocky Horror Picture Show (1975)
Referências/Fontes
BRUHM, S. The Gothic Novel and the Negotiation of Homophobia. The Cambridge History of Gay and Lesbian Literature, 17 nov. 2014.
FOX, R. Queer failure in Freddy’s Revenge and Scream, Queen! A documentary’s recuperation of Elm Street’s queer memory. Critical Studies in Media Communication, 8 ago. 2023.
SCHAFFER, T. “A Wilde Desire Took Me”: the Homoerotic History of Dracula. ELH, v. 61, n. 2.
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