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VÉU DE SEDA




Qual o sentido da vida? Confesso que, nos últimos tempos, tenho me perdido um pouco nisso. Vamos dar um passo de cada vez e tentar formular sobre o que a vida pode ser. Nós funcionamos um pouco “bem demais”. Nossos organismos parecem muito bem programados, desenvolvidos muito especificamente. Não é impossível que tenhamos surgido ao acaso, claro, ninguém é dono da verdade. Normalmente, para descobrirmos sobre a vida, nos perguntamos o porquê das coisas. Talvez, excepcionalmente, a pergunta seja “por que não?”. Por que não sermos exatamente como somos? Inteligentes, onívoros, curiosos, gananciosos, amorosos, odiosos, mamíferos, imperfeitos, perfeitos. Por que não haver referências incertas sobre a verdade das coisas, sobre as possibilidades, sobre a existência de Deus? Por que não inexistir sentido certo para nossa vida na terra, e por que não ser duvidosa a continuação de nossos seres para além daqui? Para alguns, o “por que não?” pode parecer pessimista, o que penso ser só mais uma questão de ângulo.


É difícil se dedicar de corpo e alma ou, de forma extrema, desistir de corpo e alma de tudo quando não se sabe o que se passa no universo, ou o que ele é. A probabilidade maior deve ser de que todo nosso teatro em terra seja nada menos que uma simulação, ou ao menos é o que sugere o padrão de ouro, os números de Fibonacci e tudo o mais. Mas antes de admitir teorias de conspiração, foquemos na imagem humana individual perante a existência. Como é que qualquer das coisas com as quais temos contato teria a menor importância se nossa permanência na terra é finita, temporária, carnal e frágil? Como poderíamos fazer questão das coisas, nos apegar às coisas e às sensações? Isso parece, novamente, muito pessimista, mas acho que é aí que entram as qualidades de organismo que temos. O sentir, o prazer, a curiosidade. Porque, se lucidamente, questionamos o sentido de tudo, ao menos intimamente, na carne, desejamos as coisas. Inconscientemente, queremos, almejamos, temos paixão e libido e potência para buscar as coisas. É uma lógica animalesca nos sustentando para além da lógica racional.


Imaginemos, então, que exista sim algo além. As chances são (i) de que a vida é, de fato, uma passagem temporária, e o que fazemos aqui importa, (ii) a vida é, de fato, uma passagem temporária, e o que fazemos aqui não importa, (iii) a vida que vivemos é o cerne da realidade e tudo acaba no fim. As duas primeiras admitem a infinitude do ser e a finitude da vida imediata. Dentro disso, é automática a ideia de que há algo para além daqui, e o que fazemos em terra obviamente importa porque há uma progressão entre o antes e o agora, e entre o agora e o depois. Não necessariamente a importância — entendendo-se a importância de algo como o poder de geração de qualquer efeito a partir desse algo — da vida imediata é individual, e não necessariamente a é para outros, mas pode-se viver por via das dúvidas, e se esforçar por via das dúvidas, porque é mais seguro pecar para mais do que para menos, mesmo considerando que, se Deus existe, ele saberá que o progresso que fizemos seria, neste caso, por interesse. Então, não temos alternativa senão realmente evoluirmos como seres, em direção ao altruísmo, compaixão, amor e luz. Isso afasta, portanto, a segunda alternativa, e agora o tema fica mais interessante ao meu ver.


De que forma o que fazemos aqui não importaria, sendo esta realidade algo temporário? Ora, se nossa passagem imediata pela Terra é uma simulação e não uma realidade, pode-se dizer que o que fazemos aqui importa quando pode gerar memória para quem completa a simulação. Senão gerando memória, importa pelo potencial entre a data de entrada e de saída da simulação, ou seja: saímos diferentes do que éramos no início. Em não sendo diferentes, importa se, mesmo assim, a partir da saída, faríamos algo diferente do que teríamos feito se jamais tivéssemos entrado, de forma que a mera entrada na simulação e os pensamentos em torno dela seriam suficientes para alterar, ao menos minimamente, a forma psicológica do sujeito. Agora, progredindo para a terceira possibilidade, vejamos.


Se nossa vida imediata é a total extensão da nossa existência, a princípio nada teria sentido quando em comparação com o vazio antes e depois, e tudo teria sentido exatamente pelo mesmo motivo, porque haveríamos de aproveitar a vida enquanto podemos. Eis que surge então a mais difícil discussão dessa matéria. Se admitirmos um dos argumentos anteriores, qual seja: exatamente por não saber, temos que agir, como ganharíamos o impulso para nos dedicarmos de coração a algo? Afinal, o tempo todo, martela em nossa mente a possibilidade de que nada do que fazemos aqui irá gerar efeito para além da vida. Isso confunde minhas ideias porque tudo o que eu faço por esforço é pensado para o futuro. Eu não trabalho agora para ser pago agora. Se fosse pago agora, eu não utilizaria esse dinheiro exatamente agora. É sempre algo futuro, e mesmo se o dinheiro fosse utilizado agora, isso só significa que estou ganhando para trabalhar, e não para aproveitar meu pagamento. Estou trabalhando para ser capaz de trabalhar, o que me transforma em um escravo moderno.


Dito isso, voltamos ao questionamento do “como teríamos a ganância para realmente nos dedicarmos a algo”? A resposta me parece ser “ignorância”. Podemos treinar nossas poderosas mentes para admitirem a ideia de que a possibilidade do vazio não existe, ou de que ela é muito baixa, ou, mais difícil. Ignorar a premissa como um todo, não pensar nela. A maior virtude das mentes simples é a paz que vem de não entender o quão ruins as coisas podem ser, ou o quão vazias. Os prazeres e estímulos são mais ressaídos, mais verdadeiros, mais palpáveis. Claro, a contrapartida disso é que os pequenos percalços comumente ignorados por pessoas mais eruditas são também mais poderosos. Para quem me lê de primeira, pode pensar que faço por aqui uma crítica à sociedade moderna, à cultura mundial contemporânea ou a qualquer coisa relativa a criações humanas ou modelos humanos de tradicionalismo antigo ou vigente. Mas a crítica é ao homem em si de forma mais profunda do que seu mero contato com outro espécime a partir de seu caráter social.


A crítica não é nem crítica de fato, é mais uma observação que me inclina para pensar que a saída para o desgosto, o medo, a perda da libido seja o treinamento da mente fria, ignorante, inflexível. Isso não é necessariamente ruim, porém, para quem for capaz de criar, com concentração e energia, essa alternativa de forma passageira, quando se tem de fazer o que se tem de fazer, e, depois, for também capaz de retornar a si sem perder a identidade. Infelizmente, isso também me parece uma forma de exploração consentida, porque o ser admite aquela realidade apenas porque não conhece nada além dela. Trabalha naquela realidade, faz o que pensa ter de fazer, ignorando destino, controle, expectativas alheias sobre ele, e a possibilidade de se satisfazê-las em nome da incapacidade de saber mais.


No fim das contas, o que elaboro leva em consideração que desconhecemos, ao que parece, muito mais do que conhecemos. Não sabemos se o fim e o começo se tocam, se o tempo é parte da identidade do espaço e se ele corresponde à quarta dimensão. Se as cordas do modelo tridimensional se esticam para outras dimensões e se Deus existe em modelo qualquer que seja. Claro, tudo isso apenas reforça o argumento de que desconhecimento é uma constante enquanto formos humanos. Isso porque nossa percepção sobre as coisas é tida com base em coisas fungíveis, perecíveis, órgãos como o cérebro, a língua, os olhos. A insanidade não é incomum. Depressão, ansiedade, desespero, nada disso é incomum e tudo isso altera nossas perspectivas, ao menos por certo tempo, e talvez cumulativamente até que estejamos senis e obtusos. Mas, é claro, considero ainda que a probabilidade maior é de que exista algo além. Digo isto em nome de várias experiências pessoais que não cabe a mim demonstrar agora, porque meu objetivo é generalizar esse raciocínio, não promover adesão a ele por algo que as pessoas não podem acessar.


O remédio então, no fim das contas, para a falta de sentido na vida, é identificar  o problema. Falta de sentido é algo que vem do questionamento, do ceticismo e do agnosticismo perante os fatos e as referências que juntamos até então sobre o universo. Portanto, é uma questão de falta de crença, falta de fé. O que ainda nos mantém no percurso é a expectativa de que exista algo a mais, o que pode ser traduzido como a mais pura das expressões humanas: a esperança. A esperança dá razão de ser, então, mas não dá ganância, não dá potência. A potência vem da fé, e para ter fé, precisamos descer do patamar do questionamento e adentrar a sala da ignorância, o que não é de todo ruim se estivermos cientes do que estamos fazendo, e para onde retornar. O problema é que assumir duas formas de pensar em um único organismo pode ser demais para a mente humana. A resposta, então, é primeiro, controle sobre si mesmo, e segundo, resistência.


A pessoa que se controla entenderá, por fim, que possui certa liberdade quanto às coisas. Percebe que foi capaz de produzir, por si só, e por falta de informações suficientes, sentido para a vida. Foi capaz de estabelecer referências individuais sobre o que acha mais provável de ser, e acho que a conclusão disso tudo, para quem tem compaixão, tato e amor, é de perceber o teatro que é a sociedade humana, e ver-se além dele. É admitir ser sua melhor e mais amorosa forma, e entender que o poder dos homens influentes é nada mais do que um símbolo dado em presente em troca de entretenimento, ou mais dinheiro, ou mais poder, ou os três. Novamente, o homem se vê tentado a ser melhor, e se não for, exigirá que outros homens ignorantes tornem-se melhores para impedir o mal que se produzirá e, uma vez o tendo feito, esses conterão sua malícia, e serão bons no fim das contas, ao menos por hora. Acho que progredimos para o bem, apesar de tudo então, e que curioso.


Não fazemos ideia do porquê das coisas, não sabemos da extensão da nossa existência, dos limites para o potencial humano, da nossa importância de ser e de agir. Nossos organismos nos limitam e nos condicionam a sermos bons em geral, ou a tentarmos ser, e ao longo dos anos, temos mudado a funcionalidade de nossos brinquedos (instituições, modelos de governo e leis) para acalmarmos os nervos e cedermos apenas aos bons sentimentos, não agirmos em nome dos nossos íntimos impulsos animalescos. Pode ser, no fim das contas, que o fenômeno que temos observado na Terra seja o mesmo fenômeno a ser observado fora dela, como sugere o espiritismo. Talvez por isso mesmo eu tenha apreço por tais teorias. 


É curioso, pode-se dizer. Mas observe você os modelos atômicos, e observe agora as grandes galáxias espaço afora. Isso é o tipo de coisa que me dá com extrema satisfação a sensação de insignificância. É o mesmo sentimento que me diz que há tanto a mais lá fora do que vejo aqui dentro. Pode ser que não vejamos sentido na vida em determinadas ocasiões. Isso pode indicar, apenas, que simplesmente o estamos buscando, não que ele não exista. Talvez, e só talvez, esse seja o Deus de que tanto falam.




Autoria: Rodrigo Ferreira

Revisão: Laura Freitas e André Rhinow

Imagem de Capa: Os Nove Círculos do Inferno, de Dante Alighieri

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