O texto de hoje, escrito pelo nosso redator Bruno Daré, reflete sobre as mentiras que rondam o isolamento social: a ilusão da alegria, de que tudo está bem e que vai ficar bem. Através da abordagem Kantiana, é feita uma análise de uma sociedade mergulhada em falácias em meio à pandemia. E você, tem caído em mentiras ultimamente?
I SWEAR TO TELL THE TRUTH, THE WHOLE TRUTH, AND NOTHING BUT THE TRUTH, SO HELP ME GOD
É difícil encontrar alegria na confusão mental da quarentena, acompanhando diariamente o espetáculo financiado pelo governo federal. Parece que vivo uma realidade estética, difícil de encontrar gente de verdade pela internet, gente sendo honesta, buscando aquilo que é verdadeiro.
No instante que você sinaliza o primeiro indício de insatisfação, quase sempre alguém apressadamente vem te dizer “tá tudo bem!”. Fui improdutivo a tarde toda, mas fui convencido de que está tudo bem – agora já posso voltar a descansar. Você não fez nada o dia inteiro, e tá tudo bem. Você não fez nada a semana inteira, e tá tudo bem. I’m a barbie girl in a barbie world. Life in plastic? It’s fantastic!
Quero descansar desse mantra que ecoa em todos os cantos das redes sociais. Cansei da encenação, já estou engasgado com pipoca. Estou desmotivado, exausto, não tá tudo bem. Que saudade da verdade desmascarada, da honestidade cruel e dolorosa de que não está tudo bem.
Convivendo com esse incômodo generalizado que sinto, dia desses me peguei rindo lendo um texto de Kant, imaginando o que seria de Pinóquio no mundo que vivemos. Explico.
Immanuel Kant, quando pensava no que constituía ações morais e ações imorais, chegou a algumas conclusões das quais compartilho. Sua filosofia moral diz, entre várias coisas, que aquilo que é moral pode ser objetivamente conhecido e determinado a partir do raciocínio lógico, ou seja, sem recorrer a misticismos, fé ou sentimentos. Aqueles princípios que são obtidos a partir da razão pura são imperativos categóricos – obrigações morais que não devem ser violadas.
Particularmente, no texto em que lia, Kant defendia que dizer a verdade é produto lógico de um de seus imperativos categóricos, normalmente traduzido para “lei universal”. Intrigado com os parágrafos do texto lembrei de Gepeto, um senhorzinho de bigode, carpinteiro, criador de Pinóquio, engolido pela baleia no filme. Gepeto deu vida a uma mentira ambulante.
Foi meu filme favorito quando criança, achava genial um boneco de madeira que não podia mentir sem passar despercebido, com o nariz que crescia. Hoje ainda fico espantado com a história, mas por motivos diferentes – agora adulto, vejo um menino de mentira que não pode contar mentiras. É cômico. É trágico. Saber que a própria vida e existência são de mentira e não poder contar nem uma mentirinha.
Parte de mim se viu nesse pesadelo de Pinóquio – como querer me privar de mentir se minha realidade toda é de plástico, de madeira, mentirosa? Parece ridículo querer se levar a sério nessa fantasia. Me sinto Pinóquio, também quero participar do parque de diversões onde está tudo bem o tempo todo. Me rendo, quero meu oculus rift, minha life in plastic.
Agora digo o que me tirou risadas, aquilo que tinha imaginado para Pinóquio nos dias de hoje: a morte. Na minha releitura, em São Paulo de pandemia, Pinóquio desiste de ser um sujeito kantiano. Decide mentir também. Seu nariz cresce e sua máscara descartável TNT rasga. Mente descaradamente. Mente desmascaradamente. No fundo, sempre quis mentir e abraçar a mentira que é sua vida, assim como todo mundo. Não encarava a honestidade com seriedade. Suas máscaras rasgam – a descartável, a de personalidade. Contrai o vírus. Morre.
Também decidi mentir, não me peguei rindo lendo o texto de Kant. Abandono Kant, hoje mergulho com Pinóquio, Barbie e a Fada do Dente, num mar de tudo bens, cloroquinas e outras mentiras confortáveis. Tiremos as máscaras e vivamos na mentira. É só uma gripezinha, é só uma mentirinha.
Artes por: Raquel Guimarães
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